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Organizadores:João Fragoso eMaria de Fátima GouvêaVolume 11ª ediçãoRio de Janeiro2014B8317-41768Copyright © dos organizadores: João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa, 2014CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃOSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJO Brasil Colonial [recurso eletrônico]: volume 1 / organização João Luís Ribeiro Fragoso; Maria de Fátima Gouvêa.- 1. ed. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.recurso digital (O Brasil Colonial; v. 1)Formato: epubRequisitos do sistema: adobe digital editionsModo de acesso: world wide webInclui bibliografia e índiceISBN: 978-85-20-01332-8 (recurso eletrônico)1. Brasil - História - Período Colonial, 1500-1822. 2. Brasil - Condições econômicas. 3. Livros eletrônicos. I.Fragoso, João Luís Ribeiro. II. Gouveia, Maria de Fátima. III. Título. IV. Série.CDD: 981CDU: 94(81)Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partesdeste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.Direitos desta edição adquiridos pelaEDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRAum selo EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA.Rua Argentina, 171 – 20921-380 – Rio de Janeiro, RJ – Tel.: 2585-2000Seja um leitor preferencial Record.Cadastre-se e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas promoções.Atendimento e venda direta ao leitor:mdireto@record.com.brou (21) 2585-2002Produzido no Brasil2016mailto:mdireto@record.com.brSumárioAPRESENTAÇÃO La guerre est finie: notas para investigação em História Socialna América lusa entre os séculos XVI e XVIII. João FragosoPARTE I Histórias do BrasilCAPÍTULO 1 Colonização e escravidão no Brasil — Memória ehistoriografiaHebe MattosPARTE II Povoamento: os cenários da Conquista da América LusaCAPÍTULO 2 A Europa da expansão medieval — Séculos XIII a XV Jean-Fredéric SchaubCAPÍTULO 3 Corporativismo e Estado de polícia como modelos de governodas sociedades euro-americanas do Antigo Regime António Manuel Hespanha e José Manuel SubtilCAPÍTULO 4 Os indígenas na fundação da colônia: uma abordagem crítica João Pacheco de OliveiraCAPÍTULO 5 Aspectos do tráfico negreiro na África Ocidental (c. 1500-c.1800) Manolo FlorentinoCAPÍTULO 6 A Europa que atravessa o Atlântico (1500-1625) Mafalda Soares da CunhaPARTE III Economia e SociedadeCAPÍTULO 7 Trocas, guerras e alianças na formação da sociedade colonial Elisa Frühauf GarciaCAPÍTULO 8 A tessitura dos sincretismos: mediadores e mesclas culturais Ronaldo VainfasCAPÍTULO 9 Narrativas quinhentistas sobre o Brasil e os brasis Andrea DaherCAPÍTULO 10 Catequese, aldeamentos e missionação Maria Regina Celestino de AlmeidaCAPÍTULO 11 Igreja, Inquisição e religiosidades coloniais Georgina Silva dos Santos e Ronaldo VainfasCAPÍTULO 12 Construindo o Estado do Brasil: instituições, poderes locais epoderes centrais Francisco Carlos CosentinApresentaçãoLa guerre est finie: notas para investigação em História Social na América lusaentre os séculos XVI e XVIII.*João Fragoso**O Brasil Colonial reúne autores nacionais e estrangeiros que procuram deslindar áreas depesquisa da sociedade da América lusa ainda pouco visitadas pela jovem historiografiabrasileira. Refiro-me à América portuguesa entre os séculos XVI e XVIII. Nas últimasdécadas, tivemos a profissionalização do Curso de História com a multiplicação dos programasde Pós-Graduação, porém grande parte das teses de doutorado e das dissertações de mestradoteve como principal foco os estudos dos séculos XIX e XX. Em outras palavras, ainda poucosabemos sobre a vida religiosa de Pernambuco da primeira metade do século XVIII e, menosainda, sobre a sociedade baiana do Seiscentos. Talvez um dos melhores indícios daprecariedade de nossas reflexões sobre as pessoas que viveram o Estado do Brasil, do GrãoPará e do Maranhão seja que somente recentemente tive conhecimento de uma estimativapopulacional — para além das anotações dos viajantes —, do Bispado do Rio de Janeiro emfins do século XVII. Segundo a Visita Paroquial de 1687, compreendendo as povoaçõessituadas entre Porto Seguro, na atual Bahia, e Curitiba, no atual Paraná, a população quecomungava no Bispado era estimada em 35.802 almas, distribuídas em freguesias e capelascuradas (ver mapa 1).1Em outras palavras, eram principalmente essas 35.802 pessoas que davam vida à economiaaçucareira de base escravista, às lavouras de alimentos e aos currais de gado. Era aquelereduzido número de habitantes que assegurava a existência de metade do território do Estadodo Brasil de então. Essa população era inferior aos possíveis 100 mil habitantes de Nápoles defins do século XVI, porém estava em um território comparável ao do Império europeu dosAustrias da mesma época. Talvez o segredo da integridade ou a possibilidade desse imensoterritório, com a sua diminuta população, ter-se mantido sob o mando da monarquia brigantinasem se desintegrar, tenha sido a natureza política dessa mesma monarquia: polissinodal ecorporativa. Em outras palavras, como no Reino, as comunidades aqui eram organizadas naforma de municípios, onde prevalecia o autogoverno, uma hierarquia estamental e a disciplinasocial dada pelo catolicismo, leia-se autodisciplina. Portanto, parece-me que a existênciadaquela América lusa fosse dada pela combinação de ao menos três fenômenos sociais, quaissejam: 1- A ideia de autogoverno dos municípios como base da organização política dascomunidades do Antigo Regime luso. 2- A disciplina e a obediência introjetadas pelas práticascatólicas naquelas mais de 35 mil pessoas diante da monarquia e Deus. 3- O sentimento depertencimento daquela população, via relações pessoais (sistema de mercês), à monarquiacatólica.Por seu turno, os princípios políticos e a visão de mundo que davam certa uniformidade àspráticas sociais e disciplina àquelas gentes disseminadas em várias comunidades, ao mesmotempo, lhes possibilitavam certa autonomia no arranjo de suas vidas. Sendo mais preciso, porexemplo, a ideia de autogoverno dos municípios possibilitava, dentro de certos parâmetros,que aquelas gentes elaborassem na América hierarquias sociais e regras de mobilidade socialcompatíveis com o realismo social, demográfico e territorial das áreas que viviam. Refiro-me,por exemplo, à mestiçagem entre índios e europeus enquanto fenômeno capaz de redefinir ofuncionamento da hierarquia estamental vinda da Europa. Da mesma forma, aquele realismoredimensionava aspectos da ideia de qualidade social na estratificação de Antigo Regime. Porexemplo, aos olhos da nobreza da terra — no caso, as elites sociais locais da América lusa — oauxilium no povoamento e na defesa dos territórios podiam aparecer como honra/serviçocompatível com a importância dada pela nobreza solar europeia ao pertencimento geracional alinhagens imemoriais.Além disso, o funcionamento dessa sociedade só fica claro quando consideramos, emprimeiro lugar, que entre eles tínhamos, além de europeus, ilhéus dos Açores, da Madeira,africanos, muitos mamelucos e índios convertidos. Em segundo lugar, a dinâmica daquelasociedade só se torna mais clara quando também pensamos a ação da população que nãocomungava. Ou seja, ao lado das 35.802 pessoas que comungavam existiam os que não eramcatólicos, leia-se, por exemplo, os índios bravos que ocupavam os arredores dos povoados.Ainda em 1767, segundo os mapas de Manuel Vieira Leão, o sertão entre os rios Piabanha eParaíba do Sul estava infestado por aqueles índios.2 Observe-se que estou me referindo àregião atualmente ocupada por cidades fluminenses como Três Rios, portanto, há poucascentenas de quilômetros da então capital do Vice-Reinado do Brasil, o Rio de Janeiro, nessaaltura, já uma das principais cidades portuárias do Atlântico Sul. A presença de tais índiosbravos sugere a existência de guerras e negociações entre esses e a sociedade que comungava.Para tanto,não apenas concorrentes europeus, mas principalmente povos originários diversos,com organizações políticas e histórias específicas. Por outro lado, se a concepção de Américaportuguesa é anterior à de Brasil Colonial como construção política, precede a ambas apercepção da efetiva presença na costa atlântica da América de uma colônia portuguesa,espraiada pelo litoral do Atlântico sul e conhecida como Brasil, que já teria mesmo umahistória em princípios do século XVII.5O que procuro ressaltar é que a própria construção de tais noções e formas de denominaçãoconstitui-se como objeto de história.Por outro lado, a expressão Brasil Colônia traz também embutida uma operaçãohistoriográfica. O adjetivo colonial aposto ao nome Brasil enfatiza a relação metrópole-colônia, problematizando em termos históricos a subordinação econômica e política que oprocesso de independência viria quebrar. Seu uso se generalizou na historiografia internacionala partir das próprias lutas de independência nas Américas e, posteriormente, da experiêncianeocolonial europeia de finais do século XIX.No Brasil, a obra de Capistrano de Abreu é marco de consagração da expressão nahistoriografia.6 Permaneceria em voga por todo o século XX, ao formular como problema asorigens da especificidade cultural e socioeconômica do país em relação à ação colonizadora dePortugal, mas também em relação às demais sociedades escravistas do mundo atlântico.A constituição de uma sociedade escravista ou escravocrata esteve na base de muitas dasrespostas à questão da especificidade colonial brasileira em relação à metrópole portuguesa.7Por outro lado, em diversas abordagens, a colonização portuguesa foi chave de individuação dasociedade brasileira em abordagens comparadas das sociedades escravistas da América.8Entretanto, as pesquisas históricas sobre o Brasil colonial e sobre a escravidão no Brasil nemsempre se desenvolveram de forma articulada. A proposta do presente texto é historiar o lugarda escravidão na historiografia do Brasil Colonial, colocando em relevo o conhecimentoefetivamente produzido sobre o tema (escravidão colonial) ao longo do tempo.Numa primeira parte, a abordagem privilegia a dimensão de história/memória da nação dahistoriografia oitocentista e a condição de história do tempo presente de que então se revestia ahistória da escravidão. Sob essa perspectiva, procurei identificar os sentidos do colonial e olugar da escravidão nas obras paradigmáticas de Varnhagen e Capistrano de Abreu.9 Tambémreduzi propositalmente a lente da pesquisa, procurando apresentar ao leitor o conhecimentoefetivamente produzido sobre a instituição escravista nas narrativas sobre a história colonialempreendidas pelos dois historiadores.Em seguida, a partir de alguns balanços historiográficos,10 busquei contextualizar osdeslocamentos do fato escravista nas abordagens de história colonial ao longo do século XX.Também aqui fechei o foco da abordagem, procurando mapear, especificamente, o papel daescravidão enquanto relação social nos modelos interpretativos adotados.Para concluir, inverti a lógica da investigação para explorar o lugar do colonial na evoluçãorecente da historiografia sobre a escravidão no Brasil, fazendo algumas proposições paraconectar historiografias muitas vezes desenvolvidas em paralelo.A colonização na historiografia oitocentista: Varnhagen e a escravidão como história do tempo presenteAo publicar em 1854 o primeiro tomo da História geral do Brasil, Francisco Adolfo deVarnhagen esclarecia em subtítulo próprio que o livro tratava do descobrimento, colonização,legislação e desenvolvimento deste Estado, hoje Império independente, escrita em presença demuitos documentos autênticos recolhidos nos arquivos do Brasil, de Portugal, da Espanha eda Holanda.11 Na ocasião, a expressão Brasil Colônia ainda não se mostrava consagrada.Apenas o subtítulo do tomo I fazia a ela referência, numa acepção bastante específica, aoinformar que as doutrinas daquele tomo compreendiam a história do Brasil Colônia, ou doBrasil antes de ser Principado, referindo-se à disposição feita logo após a restauraçãoportuguesa (1640) de que os primogênitos do rei de Portugal herdeiros presuntivos da Coroa,se intitulariam para sempre Príncipes do Brasil.12 A partir daí, Varnhagen já não utilizou parao Estado do Brasil a expressão colônia.Do ponto de vista historiográfico, a História da América portuguesa, publicada emprincípios do século XVIII pelo erudito baiano Sebastião da Rocha Pitta, seria o principal textode interlocução da História geral...13 Apesar de fluente em inglês, o historiador brasileirooitocentista citou bem menos History of Brazil, de Robert Southey, publicado na Inglaterraentre 1810 e 1819, ainda na época da presença da Corte portuguesa no Brasil.14 Única obracomparável à História geral... do ponto de vista da erudição. Quando o faz, o elogio é contidoe largamente superado pela crítica à abordagem, que considerava, antes que uma história doBrasil, memórias cronológicas, que se detinham exageradamente em histórias indígenas e seequivocavam ao ultrapassar as fronteiras da América portuguesa para incorporaracontecimentos relativos à região do Prata.15Antes da publicação da História geral... havia alguns títulos voltados para a história doBrasil publicados no exterior. Entre os mais conhecidos no país, além dos três volumes daHistory of Brazil de Southey, escritos a partir dos documentos coletados por seu tio, que viverapor mais de 30 anos em Portugal, havia também uma Histoire du Brésil por AlphonseBeauchamps, que teria de fato plagiado o primeiro volume do poeta inglês. Nela se baseara emgrande parte o Compêndio de História do Brasil, publicado pelo general Abreu e Lima em1842. Tal Compêndio... foi objeto de feroz crítica de Varnhagen, a partir da qual se estabeleceuintensa polêmica. Nele, certo nativismo na leitura da guerra contra os holandeses se faziapresente, inclusive com a busca de incorporação de heróis de origem negra e indígena àhistória pátria.16 Também em francês, o Resumé de l´histoire du Brésil (1825), de FerdinandDenis, republicado em versão ampliada como Brésil, em 1846, era bastante conhecido einspirou o manual escolar de Henrique N. Bellegarde (1828).17 Tais textos franceses, bemcomo os três volumes de Southey, dedicavam muito mais espaço à escravidão e aos costumesdos grupos indígenas do que os compêndios e manuais brasileiros neles inspirados.Para o olhar estrangeiro, a escravidão e a presença indígena marcavam o exotismo e apeculiaridade do país.Na narrativa de Varnhagen, porém, a linha divisória entre a América portuguesa e oImpério do Brasil mostrava-se bastante imprecisa. Na primeira edição do trabalho (1854,1857), começava o livro com a expansão portuguesa no Atlântico e o terminava com a carta deabdicação de Pedro I, em 1831. Na segunda edição, feita ainda em vida pelo autor, cedendoparcialmente às críticas de alguns contemporâneos,18 passou a iniciar o livro com a descriçãoda terra e os capítulos sobre as populações indígenas (cap. 7 a 10 da primeira edição) e aconcluí-lo com o capítulo sobre os escritores e viajantes do período joanino. Retirou dosegundo tomo as narrativas referentes aos eventos posteriores à revolução pernambucana de1817, que seriam incorporados à sua história da independência do Brasil, publicadapostumamente.19Para Varnhagen, a nacionalidade brasileira era filha direta da presença portuguesaenraizada na América. E por isso a História geral do Brasil foi severamente criticada desde apublicação, ainda que celebrada como emblema de erudição.20 No entanto, através de manualdo Colégio Pedro II escrito por Joaquim Manoel de Macedo,21 que teve na obra sua basehistoriográfica, e da republicação do livro já no século XX, com notas e comentários deCapistrano de Abreu e Rodolfo Garcia, incorporando a organização dos capítulos da segundaedição,22 pode-se afirmar que a narrativa tornou-se clássica.Como bem reconheceu Capistranode Abreu, Varnhagen foi o mais erudito e bem formadodos historiadores brasileiros nos termos propostos pela cultura histórica oitocentista.23 Seugosto pelos arquivos o fez descobrir inúmeros documentos e textos inéditos. Ao procurá-los,tinha por objetivo formar uma base erudita para a memória pátria, o que de certa formaconseguiu. Principalmente os capítulos com resenhas gerais sobre as obras publicadas no ousobre o Brasil formaram uma espécie de primeira brasiliana. Sua questão central, como deresto de quase toda a historiografia oitocentista, era como construir uma narrativa históricabaseada em documentos e textos de época, conferindo suporte à identidade nacional.24 Aepígrafe do primeiro volume, assinada pelo visconde de Cayru, enfatizava a orientação: Aimportância de uma história geral de qualquer Estado independente é reconhecida em todopaís culto.25 História-memória, mas que devia se apoiar em fatos bem documentados e que porisso competia com outras narrativas e formas de apropriação do passado.Apesar de uma reconhecida superioridade em termos de aparato de erudição em relação aoutros textos produzidos por autores brasileiros, a obra de Varnhagen esteve longe de serconsensual entre os contemporâneos. Não foram poucos os que criticaram seu continuísmo,que tornava quase indistinta a fronteira entre a história do Brasil e a da colonização portuguesana América.Desde princípios do século XIX, para muitos, e no interior do próprio Instituto Histórico eGeográfico Brasileiro (IHGB), pensar em escrever a história do Brasil era pensar em comodiferenciá-la da história de Portugal, do qual o país acabava de se separar. É bem conhecida atese do naturalista alemão Von Martius, ganhadora do concurso sobre como escrever a históriado Brasil.26 Para mais de um comentarista, ela prefigurava a construção que Gilberto Freyreformularia cerca de cem anos depois, ao propor que a história do Brasil devia ser escritalevando-se em conta o encontro de três raças, a portuguesa, a ameríndia e a africana.27 MasMartius enfatizava também o papel preponderante da expansão portuguesa e a necessidade dese estudar a história da legislação e do estado social d[aquela] nação.28Apesar das críticas a ele dirigidas, Varnhagen parece ter se esforçado para seguir a receita.29A legislação e o estado social da nação portuguesa ocupam lugar privilegiado na obra queescreveu. Dedicou três capítulos aos povos indígenas, seus usos e costumes. Muitos outros àsguerras travadas contra eles. E não se furtou a analisar a contribuição do que chamou emalguns trechos de colonização africana.Como a colonização africana, distinta principalmente pela sua cor, veio a ter tão grande entrada no Brasilque se pode considerar hoje como um dos três elementos de sua população, julgamos nosso deverconsagrar algumas linhas neste lugar a tratar desta gente, a cujo vigoroso braço deve o Brasilprincipalmente os trabalhos do fabrico do açúcar, e modernamente os da cultura do café.30Informava que vinham de toda a antiga Nigrícia (Costa Atlântica, Contra Costa e Sertões daÁfrica), formavam diferentes nações e podiam ser muçulmanos ou cristãos, mas em suamaioria eram gentios e idólatras.31 As primeiras levas teriam vindo como escravos diretamentede Portugal, com seus amos. Depois, passaram a ser diretamente vendidos para as plantaçõesde açúcar das Américas, aprisionados nas guerras internas ou vendidos pelas próprias famíliasem caso de fome. De uma maneira geral (pelo menos no Brasil), considerava que melhoravameles de sorte.32Reconhecia bens e males provindos da África e do cativeiro estrangeiro. Entre os bens, ainfluência na agricultura e nas formas de beneficiamento dos metais, na culinária e na línguaportuguesa. Entre os males, os hábitos menos decorosos, seu pouco pudor e sua tenaz ousadia,mas principalmente a própria experiência degradante do cativeiro hereditário, só atenuado pelapresença de um bom senhor, sem o qual o africano boçal devia perecer a míngua...e o mesmo sucederia ainda hoje a muitos deles se momentaneamente os libertássemos antes de os irpreparando para com o tempo fazer a seus descendentes o bem que seja compatível, em relação ao estadoe à família.33Vale a longa transcrição para enfatizar o que tentei sugerir com o subtítulo desta parte. Na obrade Varnhagen, a escravidão africana era uma questão histórica, mas também um problemapolítico contemporâneo. E essa perspectiva não pode ser esquecida. O mesmo vale para suapolêmica abordagem sobre os povos originários. Ao tratá-los historicamente, o autor nuncadeixava de ter em mente o problema político da presença de povos indígenas considerados nãocivilizados nas áreas de fronteira da jovem monarquia.Entre os opositores da abordagem de Varnhagen, o indianismo romântico configurou-secomo movimento de dimensões políticas e culturais importantes à época da edição do primeirovolume do trabalho. Uma leitura atenta do livro evidencia a construção do texto em disputadireta com tais opositores, chamados por ele de adeptos do incoerente sistema do patriotismocaboclo.34Foram tantas as críticas ao enfoque adotado em relação aos indígenas que, ainda em 1857,quando da publicação do segundo volume, Varnhagen se sentiu obrigado a escrever toda umanova introdução para respondê-las.35 Já no prefácio do volume, afirmou a legitimidade de seuponto de vista cristão e monarquista, defendendo-se das acusações de parcialidade em relaçãoàs contribuições de negros e índios à nacionalidade brasileira. No afã da polêmica, os africanosperdiam a condição de colonizadores, que passava a ser reservada apenas aos portugueses.No tratar dos colonizadores Portugueses, dos bárbaros Africanos, e dos selvagens Índios, procurávamosser tão justos como nos ditaram a razão, o coração e a consciência... sentenciando imparcialmente aosdelinquentes e premiando o mérito, sem perguntar a nenhum se procedia do sertão, se d’Africa, se daEuropa, ou se do cruzamento de sangue. De outro modo, mal houvéramos podido conscienciosamentecondenar aos ferozes assassinos do nosso primeiro bispo, aos bárbaros amocambados, aos cobiçososmascates e aos revolucionários de 1798, nem vitoriar devidamente o Índio Camarão, o preto HenriqueDias, o português Conde de Bobadela e o pardo sertanejo Manduaçu.36Combinando elementos desde o século XVIII presentes no pensamento católico ilustrado,incluindo citações do filósofo francês Buffont, precursor do racismo científico, o texto éverdadeira obra-prima do que hoje chamaríamos de politicamente incorreto. Varnhagenafirmava-se pessimista em relação às possibilidades morais e civilizacionais dos índios semque fossem coagidos pelo uso da força e fazia o elogio do papel civilizador da escravidão e daexpansão imperial europeia. Apesar de descartar de uma maneira geral explicações racialistas(lembremo-nos de que são homens como nós37) e preferir pensar em termos civilizacionais,considerou os índios selvagens, verdadeiros homens caídos,38 muito menos evoluídos no planocivilizacional do que aqueles a quem chamava de nossos africanos,39 considerados bárbaros,mas não selvagens.Para Varnhagen, autoidentificado como um sócio do Instituto Histórico do Brasil nascidoem Sorocaba, a escolha de um determinado ponto de vista era algo imprescindível à escrita dahistória:Um Índio que escrevesse a história da Conquista não teria que cansar-se muito para nos dizer que paraele tudo quanto haviam feito os Europeus fora violência, ilegitimidade, usurpação; e com inscrever estastrês palavras no frontispício de um livro em branco satisfaria a sua missão, sem rebuscar documentos nosarquivos inimigos; pois que lhe faltaria tempo para contar-nos a miséria, degradação e antropofagia dosseus. Eis a história nacional se os Índios do mato conquistassem todo o Brasil, e se tivesse por chefe aum Ambiré e por armas uma frecha índia espetando a caveira de um cristão.Um infeliz africano, que escrevesse a história do cativeiro hereditário, poderia tambémcompendiar asua obra exclamando: Engano, crueldade e escravidão! E nestas três palavras se deveria resumir a históriada república do Haiti, anterior ao atual domínio nela da raça africana, se a sua forma de governo, os seuscódigos, e a sua língua permitissem ao historiador haitiense renegar de todo da civilização francesa.40Partindo do ponto de vista do colonizador português e de uma perspectiva racialista,apresentava sem meias palavras o branqueamento como horizonte da nação:Se quereis saber que elemento de povoação predomina atualmente no Brasil, percorrei as cidades e asvilas. Vereis brancos de tipo europeu, vereis alguns negros, vereis gente procedente destes dois sangues,e raramente, numa ou noutra figura, encontrareis rasgos fisionômicos do tipo índio, aliás por si bemdistinto. E isto não porque se exterminasse esta raça, e sim porque eram os índios em tão pequenonúmero no país que foram absorvidos fisicamente pelos outros dois elementos, como o forammoralmente. Isto pelo que respeita ao presente. Quando ao futuro meditai no desejo que tendes depromover a colonização europeia, na necessidade reconhecida de a favorecer, e nas providências que jáestamos para isso tomando, e dizei se a nação futura poderá ser índia ou conga.41Mais do que confirmar a perspectiva elitista e de fundo racista do autor, tais parágrafosrevelam a existência de divergências políticas entre os homens do tempo sobre a forma deescrever a história do Brasil e sobre o lugar a ser ocupado nessa narrativa por indígenas eafricanos escravizados. Varnhagen escrevia na defensiva e ao imprimir a segunda edição daobra, como já foi assinalado, cedeu a algumas críticas, passando a iniciar o volume com adescrição da terra e os usos e costumes dos povos originários (seção VII a X da primeiraedição) ao invés da expansão ibérica no Atlântico.Ainda assim, a narrativa se mantém construída da perspectiva das elites portuguesasenraizadas na América, acentuando sua autonomia de ação e a liberalidade da Coroa noprimeiro volume (referente aos séculos XVI e primeira metade do XVII) e, no segundo, apresença intelectual e política dessas mesmas elites na Corte portuguesa, referidas comoportugueses da América. Nesse aspecto, a obra de Sebastião da Rocha Pitta e também a dosgenealogistas brasílicos do século XVIII, paulistas ou pernambucanos, serviram de base paraargumentação.42Na História geral do Brasil, se as prefigurações culturalistas de Von Martius não serealizam e as preocupações mais propriamente socioeconômicas encontram-se bastante longedo espírito da obra, as abordagens de história institucional se fazem bem mais consistentes.Desse ponto de vista, a escravatura — indígena ou africana — aparece como questãoimportante no trabalho. Era difícil ignorá-la em um país em que a escravidão era reconhecidapor lei e que tolerava de maneira escandalosa o comércio ilegal de cativos africanos enquantoVarnhagen redigia a História geral...Especialmente no primeiro volume, os conflitos entre colonos, representantes da Coroaportuguesa e jesuítas em relação à escravidão indígena e seus desdobramentos legais sãoelementos privilegiados na narrativa empreendida. Tal abordagem tomada cronologicamenteleva o autor a desenvolver uma espécie de tese, não enunciada como tal em função do estilonarrativo da obra, sobre a gênese da dependência brasileira ao tráfico atlântico de escravos.Segundo a História geral..., a escravidão hereditária com direito à compra e venda doescravizado vinha da tradição romana e Lisboa se constituía em um dos principais portosnegreiros da Europa nos séculos XV e XVI.43 A mesma base jurídica legitimava apossibilidade da escravidão africana ou indígena, que podia se fazer por guerra justa ou porresgate de pessoas escravizadas legalmente dentro da lei dos gentios.Da mesma forma que os jesuítas denunciavam os excessos da escravização indígena porcristãos nas Américas, outros religiosos fizeram denúncias semelhantes em relação às práticasde escravização na África, o que é sublinhado no texto. Ao narrar os conflitos entre jesuítas ecolonos ao tempo do governo de Mem de Sá, transcreve integralmente o famoso texto de freiThomas de Mercado (1569) sobre os abusos do tráfico de escravos na África.44 O trechodenunciava o caráter negreiro das guerras travadas no continente africano, a prática dosbatismos em massa e os horrores cometidos nos portos de embarque e continuados nos navios.Propunha como solução proibir os cristãos de participar do comércio de escravos no continenteafricano. Varnhagen assinala ainda o envolvimento de algumas ordens religiosas, em especial ados jesuítas, na remessa de escravos africanos para a América.Segundo a História geral..., as repetidas proibições da escravidão indígena se deveram àinfluência das Antilhas, onde se teria comprovado a melhor resistência dos africanos aoextenuante trabalho do cultivo da cana-de-açúcar, e aos interesses negreiros dos jesuítas, assimliteralmente referidos.45 A preponderância de tais interesses teria levado à proibição daescravidão indígena na América e à generalização do tráfico negreiro no Atlântico, comnefastas consequências para o Brasil, ainda às voltas com medidas repressivas queconcretizassem sua extinção definitiva três décadas depois da independência (o primeirovolume da História geral... foi publicado em 1854).Coerente com o texto do historiador de uma nação que se queria moderna, apesar de aindaescravista, defende um ponto de vista francamente favorável à legitimidade da escravidão emalgumas condições. Ainda que crítico à forma como se estruturou a escravidão africana,baseada no tráfico transatlântico. O autor apresenta algum apreço pelas novas teoriasracialistas, como pode ser visto nos textos em relação aos indígenas e aos africanos, masconsiderava que precisavam ainda ser submetidas a novas observações para dar resultadosseguros e simples, capazes de serem aproveitados em uma história civil.46 E não precisavadelas para legitimar a escravidão historicamente e para advogar a impossibilidade de umaliberdade imediata para os escravizados no país. Segundo ele, a escravidão era princípioantigamente admitido por todos os povos... ainda hoje [reconhecido por] algumas nações daEuropa e até o tolera o Evangelho.47Seu elogio à colonização portuguesa e a defesa do escravismo em determinadascircunstâncias históricas foram alvos de intensas críticas. Em 1869, o livro de Southey foifinalmente traduzido para o português e apresentado como alternativa à História geral..., porseu tom abolicionista e antiportuguês. Como era também anticatólico, a edição se fez anotadapor um padre, de modo a diminuir o impacto do ponto de vista protestante presente na obra.48A interpretação da institucionalização da escravidão africana no país, a partir dodesenvolvimento das plantações de cana-de-açúcar nas Antilhas e da adesão jesuítica ao tráficoafricano como forma de proteger os povos originários da América da ação escravizadora doscolonos guarda interesse e atualidade. O argumento foi parcialmente retomado (especialmentea importância da tese de concentrar a ação evangelizadora em um só continente para alegitimação do tráfico atlântico) por Luiz Felipe Alencastro em texto que se tornou referênciasobre a formação do Brasil no contexto do Atlântico sul.49 As informações e análises reunidasna História geral... sobre a presença da instituição da escravidão na legislação e nas práticastradicionais portuguesas, sobre o papel de Lisboa como porto negreiro antes da consolidaçãodo sistema de plantation nas Américas, bem como a abordagem institucional interligada entreescravidão indígena e africana, construíram a base de um primeiro saber histórico sobre aescravidão no Brasil que teria importantes desdobramentos nas abordagens historiográficasposteriores.Mas do ponto de vista político, a análise teria vida mais curta. A dependência do tráficoatlântico que o país ainda se esforçava por extinguir era apresentadacomo consequênciaindesejável da vitória jesuíta sobre os colonos, impedindo a continuidade da escravidãoindígena no país. Também a existência de povos indígenas ainda selvagens nos sertões seriaconsequência daquela derrota. Segundo o polêmico ponto de vista, tais índios poderiam tersido e ainda deveriam ser civilizados a partir de formas variadas de trabalho compulsório.Na década de 1870, defesa tão explícita da escravidão era considerada quase intolerável pormuitos críticos. Além da falta de estilo e da organização narrativa do texto da História geral...,que, para alguns, a aproximariam da crônica, e não da História.50 Caberia a Capistrano deAbreu a reabilitação de Varnhagen como historiador, ao escrever seu necrológio, em 1878.(...) a obra de Varnhagen se impõe ao nosso respeito e exige nossa gratidão e mostra um grande progressona maneira de conceber a história pátria. Já não é a concepção de Gandavo e Gabriel Soares, em que oBrasil é considerado simples apêndice de Portugal, e a história um meio de chamar a emigração, e pedir aatenção do governo para o estado pouco defensável do país, sujeito a insultos de inimigos, contra os quaisse reclama proteção. Não é a concepção dos cronistas eclesiásticos, que veem simplesmente umaprovíncia, onde a respectiva Congregação prestou serviços, que procuram realçar. Não é a de Rocha Pitta,atormentado pelo prurido de fazer estilo, imitar Tito Lívio e achar no solo americano cenas querelembrem as que passaram na Europa. Não é a de Southey, atormentado ao contrário pela impaciênciade fugir às sociedades do Velho Mundo, visitar países pouco conhecidos, saciar a sede de aspectosoriginais e perspectivas pitorescas, a que cedem todos os poetas transatlânticos (...) Não. Varnhagenatende somente ao Brasil, e no correr de sua obra procurou sempre e muitas vezes conseguiu colocar-sesob o verdadeiro ponto de vista nacional.51De fato, a trajetória do historiador cearense se constrói em diálogo crítico com a obra deVarnhagen. Os Capítulos de história colonial foram finalizados ao mesmo tempo queCapistrano fazia a revisão e os comentários críticos do primeiro volume da História geral...52 eo diálogo entre as duas obras é bastante rico.A formação da nação: Capistrano de Abreu e a construção do Brasil ColonialPara Capistrano, Varnhagen era a referência, mas também o paradigma a ser ultrapassado.53Entre as muitas diferenças entre os dois, analisadas por diversos comentadores, a adoção doadjetivo colonial pode ser pensada como principal operação historiográfica de diferenciação.Capistrano não estava dissociado da concepção de história-memória ainda predominanteem fins do século XIX, mas buscava fazer para o Brasil uma história íntima, que deveriamostrar como aos poucos foi se formando a população, devassando o interior, ligando entre sias diferentes partes do território, fundando indústrias, adquirindo hábitos, adaptando-se aomeio e constituindo por fim a nação. Para ele, a outra, a história externa, que trata o Brasilcomo colônia portuguesa, já tinha sido em grande parte contemplada.54 Para Capistrano, odesbravamento das vastas extensões de terra da América, com a adaptação do português aonovo meio, misturando-se com os povos nativos e incorporando muitas de suas técnicas econhecimentos, consistiria o principal elemento de transformação da colônia portuguesa emum novo tipo de sociedade.55 Para José Honório Rodrigues, Caminhos antigos e povoamento[1899] representariam para a historiografia brasileira o que The Frontier in American History[1893] de F. Turner é para a historiografia americana.56Nessa história íntima do país, a escravidão e o tráfico atlântico ocupavam lugar secundário,seja do ponto de vista institucional, seja do ponto de vista étnico-cultural. Em polêmica públicacom Silvio Romero, intérprete que enfatizava a importância da escravidão africana naformação do povo brasileiro, atribuía o que havia de diverso entre o brasileiro e o europeu...em máxima parte ao clima e ao indígena.57 Textualmente, considerava que o caráter nacionalbrasileiro, em sua diferenciação e sentimento de superioridade em relação ao português, teriase formado, mesmo que imperfeitamente, na conquista e no desbravamento do sertão, ao longodo século XVII. Manteria a tese na sua principal obra, Capítulos de história colonial,publicada em 1907:Por outra parte transparece o segredo do brasileiro: a diferenciação paulatina do reinol, inconsciente etímida a princípio, consciente, resoluta e irresistível mais tarde, pela integração com a natureza, com suasárvores, seus bichos e o próprio indígena.58Vale acompanhar o diálogo entre a História geral... e os Capítulos..., tanto no que se refere aoque diferenciava a história do Brasil da colonização portuguesa na América como,especialmente, ao lugar ocupado em ambos os trabalhos pela temática da escravidão. Como nasegunda edição de Varnhagen, o livro síntese de Capistrano se inicia com um capítulodescrevendo a terra e seus habitantes originários, entendidos como parte integrante daquelamesma natureza, antes da chegada de portugueses e africanos, tratados no segundo capítulocomo fatores exóticos. Também ali a escravidão do ponto de vista institucional é vista comosimples continuidade da estratificação sociojurídica portuguesa.Abaixo do terceiro estado havia ainda os servos, escravos etc. etc., cujo direito único livrava-se empoderem, dadas circunstâncias favoráveis, passar à classe imediatamente superior, pois conquanto rentesas separações, as classes nunca se transformaram em castas.59Escrevendo poucos anos depois da abolição, não se detém em justificar ou condenar ainstituição escravista. Trata-a como um fato, demográfico, jurídico e também econômico.Surpreende a não problematização, ou a quase naturalização, da instituição da escravidão emtodo o livro, apesar de sua presença constante na narrativa. A palavra tráfico aparece diversasvezes sem qualquer qualificativo (negreiro, africano, de escravos). O autor supõe umconhecimento prévio do uso da palavra referenciado ao comércio atlântico de escravos, comose havia generalizado no Brasil ao longo do século XIX.No terceiro capítulo — sobre os descobridores — o papel dos portugueses comovendedores de escravos, fossem indígenas ou africanos, entre a Europa e a África, é registradosem espanto. A nau Bretoa, armada por Fernando de Noronha e outros cristãos-novos em 1511para Cabo Frio, podia resgatar papagaios, gatos, e, com licença dos armadores, tambémescravos; vedado era o comércio de armas de guerra...; segundo o capítulo, pau-brasil,papagaios, escravos, mestiços condensam a obra das primeiras décadas.60O fato de que o Brasil atuara como vendedor de escravos antes de tornar-se compradorsempre chamou a atenção dele. A constatação aparece com destaque na tese sobre odescobrimento do Brasil (1883). Apenas com o estabelecimento da colonização efetiva oBrasil deixara de ser vendedor de cativos para tornar-se comprador. Com base em Gandavo,informa ao leitor que obter escravos era a primeira coisa que queria um colono português noBrasil, porque com meia dúzia deles logo tem remédio para poder honradamente sustentar afamília. Como Varnhagen, coloca em destaque a prática da escravidão indígena e a consideracom a mesma origem jurídico-institucional na legislação portuguesa. Segundo Capistrano, osescravos indígenas auxiliavam extraordinariamente aos que começaram a vida nestas terras...61Capistrano faz uma narrativa vívida da escravização indígena pelos chamados bandeirantes,caçadores de gente, cujos comboios de escravos amarrados uns aos outros os faziam tambémfuncionar como carregadores. Descrição em tudo semelhante à organização interna do tráficode escravos no continente africano, ainda que essa informação não seja assinalada pelo autor.62Em claro diálogo com Varnhagem, perguntava: compensará tais horrores a consideração deque por favor dos bandeirantes pertencem agora ao Brasil as terras devastadas?Não atribui, porém, à atuação jesuíta o declínio da escravidão indígena. Coloca, ao invés,pioneiramente em destaque o desastre demográfico que se seguiu ao contato, assinalado comofato misterioso e até agora inexplicável, que condena ao desaparecimento os povos naturaispostos em contato com povos civilizados. Na narrativa, o desaparecimento demográfico dosíndios teria trazido como consequência o aumento da importação africana.63A psicologia dos diferentes povos formadores da nação, como sugerido por Martius, agoraem diálogo com o cientificismo cada vez mais em voga no final do século XIX, ocupa lugar dedestaque na análise, com maior ênfase para o papel de portugueses e indígenas. De todo modo,também em Capistrano o africano se fará presente. E, de maneira nova em relação àabordagem de Varnhagen, a mestiçagem aparece referida como especificidade nacional — aser valorizada como característica diferenciadora da experiência portuguesa metropolitana, enão como forma de branqueamento.O negro trouxe uma nota alegre ao lado do português taciturno e do índio sorumbático. As suas dançaslascivas, toleradas a princípio, tornaram-se instituição nacional; suas feitiçarias e crenças propagaram-sefora das senzalas. As mulatas encontraram apreciadores de seus desgarres e foram verdadeiras rainhas. OBrasil é inferno dos negros, purgatório dos brancos, paraíso dos mulatos, resumiu em 1711 o beneméritoAntonil.64A traços largos, nas próprias palavras, não deixou de qualificar as limitações de tal paraíso,bem como de identificar diferenças entre os processos de mestiçagem.A mestiçagem com o elemento africano, ao contrário da mestiçagem com o americano, era vista comcerta aversão, e inabilitava para certos postos. Os mulatos não podiam receber ordens sacras, porexemplo: daí o desejo comum de ter um padre na família, para provar limpeza de sangue. Com o tempoos mulatos souberam melhorar sua posição e por fim impor-se à sociedade. Quando reuniam a audácia aotalento e à fortuna alcançaram altas posições.65Contribuiu também para estabelecer alguns estereótipos largamente difundidos nos livrosdidáticos a partir de então, como o da maior resistência do africano em relação ao trabalho,comparativamente ao indígena.66Mas é a mestiçagem com os índios e a conquista do território, vencendo os obstáculosnaturais, que compõem o sentido da interpretação.Também no texto de Capistrano, as referências à escravidão foram quase sempre narrativas,laterais, sem maior ênfase interpretativa. Mas ainda assim organizaram um efetivo saber sobrea história da escravidão como prática e instituição, que dialogava com aquele antes produzidopor Varnhagen. Principalmente, a interpretação proposta para o declínio da escravidãoindígena e o crescimento da escravidão africana, relacionando-a ao desastre demográfico quese seguiu à colonização efetiva do litoral, teria longa presença no discurso historiográfico.67 Defato, como tem sido ressaltado por muitos comentadores, Capistrano vai ser reivindicado comoantecessor por quase toda a historiografia que se lhe seguiu, seja considerada tradicional ourevisionista.68Nos Capítulos..., a abordagem sobre a guerra holandesa, ainda que ocupe apenas umapequena parte do livro, em flagrante contraste com os vários que lhe dedicou Varnhagen naHistória geral..., como bem ressaltou Sérgio Buarque de Holanda,69 construiu, por exemplo,um cânone da historiografia tradicional sobre o tema, que seria exaustivamente repetido emquase todos os livros didáticos de história do Brasil até os anos 1960. Segundo ele:... Holanda e Olinda representavam o mercantilismo e o nacionalismo. Venceu o espírito nacional.Reinóis como Francisco Barreto, ilhéus como Vieira, mazombos como André Vidal, índios comoCamarão, negros como Henrique Dias, mamelucos, mulatos caribocas, mestiços de todos os matizescombateram unidos pela liberdade divina.70Capistrano está, de fato, junto a outros autores da chamada primeira república, na origem domito das três raças, em geral unilateralmente atribuído a Gilberto Freyre e ao clássico Casagrande & senzala. 71Examinando superficialmente o povo, discriminam-se logo três raças irredutíveis, oriunda cada qual decontinente diverso, cuja aproximação nada favorecia... Só muito devagar foi cedendo esta dispersãogeral, pelos meados do século XVII. Reinos e mazombos, negros boçais e negros ladinos, mamelucos,mulatos, caboclos, caribocas, todas as denominações, enfim, sentiram-se mais próximos uns dos outros,apesar de todas as diferenças flagrantes e irredutíveis, do que do invasor holandês: daí uma guerra. (...)Em São Vicente, no Rio, na Bahia, e em outros lugares, por meios diferentes, chegou-se ao mesmoresultado.72Em diálogo direto com o livro de Varnhagen, valorizaria como trabalho do historiador apublicação comentada de textos de época, esforço fundamental para a consolidação de umamemória erudita do Brasil colonial.Por outro lado, apesar de continuar a colocar em destaque, como Varnhagen, a informaçãode Gandavo de que os velhos [portugueses] acostumados ao país não queriam mais sair, sendoseus primeiros entusiastas, vai estar também na origem da busca por um sentido dacolonização, entendido não como construção de uma Nova Lusitânia, mas como espoliaçãocolonial.Para tanto, foi essencial uma abordagem renovada do livro do jesuíta italiano João AntônioAndreoni, publicado com o pseudônimo de André João Antonil e logo depois recolhido porordem régia, em princípios do século XVIII. Capistrano foi essencial para a definição daidentidade do autor de Cultura e opulência do Brasil.73Tal construção colocava o senhor de engenho no ápice da hierarquia social e entendia oengenho como economia autônoma, autossuficiente e dependente do endividamento externopara existir. Economia naturista, que resultava em natural desafeição pela terra, pois setratava de ganhar fortuna o mais depressa possível para ir desfrutá-la no além-mar.74 ParaCapistrano, o livro de Antonil teria sido confiscado porque ensinava o segredo do Brasil aosbrasileiros, mostrando toda sua possança, esclarecendo toda sua grandeza.75A busca de um sentido inscrito na história pátria foi um dos pontos de partida dohistoriador, inserindo-o no movimento cientificista próprio da chamada geração 70.76 Ocompromisso com a historicidade de cada época prevaleceu, entretanto, nas formas em queperseguiu tal objetivo. Ainda no final do século XIX, esboçou uma festejada periodização dahistória do Brasil, em que introduzia a noção de um sistema colonial, consolidado a partir de1750, e que prefiguraria a independência política.O período que vai de 1750 a 1808 é o da consolidação do sistema colonial. As municipalidades sãoanuladas. A indústria que tendia a desenvolver-se por si é arrancada violentamente. Todas as capitaniassão arrancadas dos donatários. As minas declinam. Os Jesuítas são expulsos teatralmente. A capital étransferida para o Rio de Janeiro, e as lutas contra os espanhóis tornam-se endêmicas. O Rio Negro éelevado a Capitania, como uma guarda avançada. O Madeira é empregado de preferência ao Rio da Pratapara a comunicação com o Mato Grosso. As rivalidades entre colonos e reinóis se acusam e dão emresultado a ideia de independência.77É importante frisar, porém, que apenas indiretamente a escravidão se apresentava comoelemento importante na interpretação formulada.Não lhe parecia central à formação da nacionalidade e só ocupava papel relevante naformação da camada ínfima da população... formada por escravos, filhos da terra, africanos eseus descendentes.78Em geral não recebia destaque analítico, ao contrário da influência da natureza tropical, oudas guerras, alianças políticas e outras formas de interação com os povos originários,especialmente nos séculos XVI e XVII. Nos Capítulos..., a escravidão propriamente dita erauma instituição herdada do velho Império português, que sobrevivera à situação colonial. Aimigração forçada africana dela decorrente seampliara desproporcionalmente apenas no séculoXVIII, quando (do seu ponto de vista) a nacionalidade já estava formada. O caráter quasenaturalizado da abordagem sobre o tema dá bem a dimensão de história do tempo presente deque ainda se revestia a questão.79Capistrano continuou como principal referência historiográfica nas primeiras décadas doséculo XX. Consagrado em vida, é impressionante o consenso até hoje existente sobre opersonagem.80 Se ele de fato rompeu com a perspectiva política apegada ao fato singular dahistoriografia oitocentista, manteve-se, até o fim da vida, informado pelo nacional comoquestão. Esteve na origem do movimento de consolidação de uma memória erudita da nação,que conheceu seu auge nas primeiras décadas do século XX, e também da busca teórica porcompreender a alma do país ou o sentido de sua história, que os modernismos em brevecolocariam em voga.Colonização e escravidão na primeira metade do século XX: olhares estrangeirosPara compor um mapa aproximado da produção historiográfica sobre o Brasil Colonial e aescravidão nas primeiras décadas do século XX, parti de alguns balanços historiográficosproduzidos na França em plena revolução metodológica produzida pelo movimento dosAnnales.Emile Coornaert, historiador do trabalho, foi o primeiro professor francês convidado atrabalhar na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, no início dos anos 1930. Aoretornar à França, publicou detalhada resenha sobre a produção historiográfica brasileira, naRevue d’Histoire Moderne, em 1936.81 Apesar de não serem muito numerosos, os trabalhoshistóricos relativos à escravidão mereceram lugar de destaque em sua abordagem sobre operíodo colonial.No ano seguinte, Henri Hauser, que estivera como professor convidado na Universidade doBrasil, no Rio de Janeiro, também escreveu algumas notas e reflexões sobre o trabalhohistórico no país, publicadas na Revue Historique.82 Pouco tempo depois (1938), publicou nosAnnales Economiques et Sociales um artigo sobre a instituição do trabalho servil no Brasil, emque fazia uma síntese sobre o estado da arte dos estudos históricos sobre o tema.83O balanço historiográfico de Coornaert, publicado na Revue d’Histoire Moderne, descrevecom entusiasmo a historiografia brasileira do período e impressiona pela extensão doconhecimento apresentado. Hauser o considerou demasiadamente indulgente com ainsuficiência crítica de inúmeros trabalhos.Coornaert considerou o trabalho desenvolvido no IHGB e nos institutos históricos estaduaisdesigual como o das sociétés savantes francesas, mas com numerosos elementos preciosos,especialmente o minucioso trabalho de publicação de documentos e as imponentes séries derevistas, de extrema diversidade [na qualidade], mas com muitos artigos excelentes.84Muito alem dos institutos, a pesquisa histórica nas primeiras décadas do século XXconstituiu em monumento as fontes de época sobre o período colonial. A identificação e apublicação delas, algumas vezes seguidas de comentários críticos e de erudição, podem serapresentadas como atividades historiográficas centrais do período. Instituições importantes,como a Academia Brasileira de Letras, a Biblioteca Nacional, a Sociedade Capistrano deAbreu, o Arquivo Público de São Paulo, o Museu do Ipiranga e as mais importantes casaseditoriais, dedicaram-se à publicação de fontes e textos literários do período, com introduçõese comentários críticos produzidos por diferentes profissionais de história.Dando continuidade ao trabalho de Varnhagen e Capistrano, consolidou-se uma memóriaerudita da nação, formando um verdadeiro corpus documental, em livros e fontes de época,publicados nas coleções de documentos dos arquivos, museus e nas séries de publicação sobrea história do país.85 Formava-se um verdadeiro discurso documental sobre temas como aocupação do território, os povos indígenas e a ação missionária, as guerras coloniais, ostratados e limites, os movimentos precursores da independência, entre muitos outros. É essemovimento que mais impressionou positivamente ambos os historiadores. Como exemplo, valecitar Vida e morte do bandeirante, de Alcântara Machado, obra celebrada na resenha deCoornaert, que teve por base a série de Inventários e testamentos publicada pelo ArquivoPúblico Paulista.A Coornaert impressionou também a amplitude de algumas interpretações, apesar deapontar-lhes certos riscos. Segundo ele, o desafio imposto pelas imensas distâncias, pelanatureza tropical e pela diversidade étnica da população teria engendrado um trabalho históricoinserido em uma rede mais ampla de ciências vizinhas, em especial a geografia e a etnografia,do que aquele desenvolvido na França. Como exemplo, citou os trabalhos sobre folclore deRoquete Pinto, então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro.Destacou também a tentação de fazer obra prática, ou seja, de tomar o entendimento dopassado como plataforma para o futuro, como responsável pelo gosto por interpretaçõesabrangentes sobre a formação do país, de inspiração sociológica, mas de grande interesse paraa história. Era o caso das obras de Oliveira Viana, único brasileiro que já havia publicado emuma revista francesa. Coornaert registrou seu desacordo com as ideias do autor sobre raça, masdestacou a informação abundante de seus livros e a capacidade do autor de articulá-las,deixando ao leitor a tarefa de separar fato e interpretação.Considerou da mesma ordem o trabalho de Nina Rodrigues sobre o negro no Brasil ecelebrou as muitas informações para o período que precede o século XIX presentes em Osafricanos no Brasil. Para ele, O negro brasileiro, de Arthur Ramos, era de uma riquezaetnográfica significativa, mas sacrificava muito a uma “freudite” ainda em moda no Brasil.Estendeu a mesma crítica a Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre, considerado, porém,um trabalho de história propriamente dito, seguramente o trabalho que faz penetrar maisintimamente na vida social do Brasil antigo.86Surpreende na resenha de Coornaert a atenção para tal conjunto de trabalhos de caráteretnográfico, ensaístico ou sociológico, todos relacionados à produção de conhecimento sobre ahistória da escravidão africana no Brasil.Autores como Nina Rodrigues e Arthur Ramos, considerados fundadores da antropologiano Brasil e objeto de inúmeras apropriações críticas nesse campo, só muito recentementeforam efetivamente incorporados às discussões propriamente historiográficas. Como seucontinente de origem, africanos e seus descendentes no Brasil desde cedo foram objeto defolclore e etnografia, mas não propriamente de história. Não apenas nesse aspecto as resenhasdos historiadores franceses mostraram-se precursoras.Sobre as produções especificamente históricas para o período colonial, o grande destaqueem ambos os textos fica por conta da publicação da terceira edição integral da História geral...de Varnhagen, comentada por Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. Coornaert considerou olivro, na realidade, uma obra nova, dada a amplitude da alteração do plano do trabalho e asnotas críticas adensadas, de uma riqueza impressionante. Em seguida, destacou também areedição das obras de Capistrano, pela Sociedade Capistrano de Abreu.87 Sobre odesenvolvimento da pesquisa, assinalou a influência metodológica de Capistrano e a influênciada geografia e da psicologia social nos trabalhos.88 Mereceu especial relevo amonumentalização da história das bandeiras e da expansão do café realizada por Affonsod’Escragnolle-Taunay em mais de duas dezenas de volumes, que considerou ao mesmo tempoinstrumentos de trabalho e livros de leitura, apesar da falta de notas e aparelho crítico.89Tanto Hauser como Coornaert valorizaram, na obra de Taunay, a produção de informaçõessobre a história do tráfico e da escravidão no Brasil.90A resenha de Hauser, publicada depois da de Coornaert, é bem menos entusiasmada. Aabordagem é muito crítica e deixa de lado, talvez por desconhecimento, talvez por nãoconsiderá-lostrabalhos históricos, os ensaios de sociologia, antropologia e folclore,preocupados em fazer obra prática, que chamaram a atenção de Coornaert. Para a históriacolonial, seriam dignos de menção apenas os esforços de publicação de documentos,desenvolvidos pelo Arquivo Nacional, pela Biblioteca Nacional, Academia Brasileira deLetras, por museus e arquivos estaduais, além da reedição da História geral... de Varnhagen,da obra do próprio Capistrano e de alguns de seus discípulos, entre eles Paulo Prado eTaunay.91O que mais apresentam em comum as resenhas dos dois historiadores franceses, além doelogio do trabalho de erudição desenvolvido no país, é o relativo destaque dado aoconhecimento já produzido sobre a história da escravidão no país, tema que aparece comorelativamente secundário quando observado de um ponto de vista interno. Considerados porHauser como uma das áreas de maior desenvolvimento da historiografia brasileira, taistrabalhos estarão na base de texto publicado por ele na Revista dos Annales, em 1938.Hauser informa ter-se baseado para redigir o artigo em um pequeno livro de AffonsoToledo Bandeira de Mello, a quem identificou como um erudito brasileiro “doublé” deadministrador de alto nível, sobre a história do trabalho servil no Brasil, publicado peloDepartamento de Estatística e Publicidade do Ministério do Trabalho, em 1936.92 No texto,propõe-se, modestamente, apenas a informar o leitor europeu sobre o conhecimento acumuladoem relação à história da instituição do trabalho servil no país condensado no livro, poisconsiderava tal saber fundamental para o desenvolvimento de considerações comparativas emrelação às experiências escravistas da América espanhola, das Antilhas e dos Estados Unidos.O livro de Bandeira de Mello abordava, em um mesmo volume, o cativeiro indígena e aescravidão africana. Hauser colocou tal perspectiva no centro de sua interpretação. O livro deinspiração é, ao contrário, largamente factual e carregado de preconceitos próprios da época. Aseguir, procurarei destacar a originalidade da interpretação empreendida por Hauser, mastambém o conhecimento factual sobre a escravidão indígena e africana em que se apoiou, poisé curioso que, a partir de um determinado momento, a historiografia sobre o período colonialtenha deixado de com ele dialogar.Para Hauser, a data excepcionalmente tardia da abolição no Brasil se devia necessariamentea características específicas da história e economia brasileiras.93 Para caracterizar talespecificidade, o texto dos Annales coloca primeiramente em evidência a presença dainstituição da escravidão em Portugal no momento da expansão ultramarina. Destaca,especialmente, o papel dos portugueses como comerciantes de escravos no Atlântico e deLisboa como porto negreiro em princípios do século XVI. Empresta grande relevo à presençade escravos em Lisboa e Coimbra, servindo na agricultura, na carga e descarga dos navios daÍndia, no serviço doméstico, como carregadores, condutores e até como concubinas à modaárabe. Segundo o artigo, esta presença negra em certos estados europeus do começo do 16ºséculo é frequentemente esquecida.94O segundo e principal ponto da argumentação desenvolvida é a abordagem conjunta, doponto de vista institucional e socioeconômico, da escravidão indígena e africana. Para Hauser,essa combinação seria a principal característica específica da instituição da escravidão nasociedade colonial brasileira, em relação às demais experiências americanas.Para o artigo, malgrado os esforços dos missionários, todo o primeiro século dacolonização foi tempo de captura e escravização da população indígena. Tudo que o podercentral pôde fazer foi tentar regularizar a instituição. A lei reconhecia a escravidão dos índioscapturados através da guerra justa, dos que atacavam os portugueses com intenção de oscomer, dos capturados para que se impedisse que fossem comidos pelos inimigos e até mesmodos maiores de vinte anos que se vendessem voluntariamente. Segundo Hauser, tais exceções,principalmente a última, podiam levar longe. 95 Mesmo após a União Ibérica e a proclamaçãoem 1611 da tese geral da liberdade dos índios, o rei católico admitia formas múltiplas de“legítimo cativeiro”. Segundo o artigo, tolerava-se mesmo a venda de cativos na Europa,mesmo que por essa época eles fossem utilizados majoritariamente no Brasil.A escravidão africana teria se desenvolvido em paralelo, sob a mesma base institucional,tendo começado ainda no século XVI, apenas um pouco mais tarde do que na Américaespanhola.96 O texto dá especial importância ao volume e aos valores envolvidos em ambos oscomércios e a sua variação ao longo do tempo.97O artigo associa ainda a deslegitimação da instituição servil à crise do vínculo colonial,atribuindo aos liberais do final do século XVIII e início do XIX as primeiras ideiasabolicionistas. Reconhece, porém, que a legislação de extinção do tráfico foi fruto danecessidade de reconhecimento inglês à independência do país e é bastante enfático aoinformar os elevados números do tráfico ilegal (1830-1850), que estima em dois milhões deingressos.98Como quarto e último ponto da leitura aqui condensada, apresenta-se o caráter doceatribuído à escravidão brasileira e uma avaliação específica da influência do africano e dainstituição escravista na sociedade brasileira contemporânea, único ponto em que segueliteralmente a argumentação desenvolvida por Bandeira de Mello.A doçura do temperamento nacional se revelaria em alguns dados empíricos, destacadospelo autor e também presentes na obra de Southey, de Ferdinand Denis e de outrosobservadores estrangeiros do país: o intenso volume de alforrias e autocompras; a relativatolerância com o folclore negro, inclusive dentro de instituições ligadas à Igreja Católica, comoas irmandades e as festas de coroação do rei Congo; a apropriação do nome de família dossenhores pelos libertos; a permanência dos libertos nas fazendas em que haviam sido cativosapós a abolição. Hauser não cita Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre, publicado em1934, mas tais informações se faziam presentes nos textos sobre a escravidão no Brasil muitoantes de sua publicação, estando provavelmente na base do rápido e estrondoso sucesso dolivro.99Surpreendem, no artigo, determinadas ausências bibliográficas e mesmo certodesconhecimento dos autores mais proeminentes do pensamento social brasileiro do período.Mais uma vez seguindo Bandeira de Mello, cita como pensadores não racistas Oliveira Viannae Mme. (sic) Nina Rodrigues, dois dos autores que mais absorveram as teorias racistas de basecientífica no contexto intelectual brasileiro. E endossa a ideia, veiculada no livro de Bandeirade Mello, a partir de tais autores, da pequena contribuição do negro à vida socioculturalbrasileira, que não poderia, entretanto, ser estendida aos mestiços. A veiculação por Hauser,conhecido como historiador progressista e republicano, de tais considerações dá bem a medidado quanto de legitimidade científica internacional desfrutava ainda o racismo científico emmeados dos anos 1930.De todo modo, uma determinada abordagem da história institucional da escravidão noBrasil e do volume do tráfico negreiro encontrava-se bem assentada na historiografia brasileiradas primeiras décadas do século. E era a questão específica que mais chamara a atenção dosdois historiadores franceses. O conhecimento acumulado possuía densidade historiográficapara ser reinterpretado por um dos pioneiros dos Annales, mas curiosamente alcançou umarepercussão bem mais modesta internamente, à exceção dos aspectos relativos à doçura docaráter nacional e aos significados etnográficos da imigração forçada africana na formação dapopulação brasileira.Se essa doçura era brasileira, como queria Hauser e também a obra de Southey e mesmoCasa grande & senzala, ou se tinha origem portuguesa tornar-se-ia tema de muitos debates. Nadécada seguinte, a publicação de O mundo que o português criou, domesmo Gilberto Freyre(1942), e sua influência no livro Slave and Citizen, de Frank Tannembaum (1946), formariamas bases acadêmicas para o desenvolvimento do chamado lusotropicalismo, com conhecidosusos políticos na legitimação da dominação portuguesa na África pelo Portugal salazarista.Que todo o conhecimento consolidado sobre a institucionalização do comércio de escravosindígenas e africanos desde o século XVI, da violência das práticas dos comerciantesescravistas luso-brasileiros na América e na África e do volume espantoso de pessoasescravizadas não abalasse essa convicção de doçura é a melhor medida do racismointeriorizado nas duas sociedades (portuguesa e brasileira) e da identidade branca ouembranquecida dos participantes na discussão.Explica também a pouca circulação, fora das discussões acadêmicas especializadas, doconhecimento efetivamente constituído sobre a antiguidade e legitimidade do comércio deescravos no contexto da expansão portuguesa e também sobre o volume quantitativo do tráficoe a violência do processo de escravização de indígenas e africanos.Do ponto de vista historiográfico, seria novamente um olhar estrangeiro que iria colocar emrelevo o que se destacava e o que se omitia daquele saber histórico na construção dolusotropicalismo. Penso, especialmente, na publicação do livro de Charles Boxer sobre asrelações raciais no Império colonial português, em princípios da década de 1960.Por outro lado, o balanço de Coornaert já sugeria largamente uma tendência de clivagemnos estudos históricos brasileiros para perspectivas mais estruturalistas e interdisciplinares. Talclivagem decorreu menos da recente formação das universidades do que da busca de fazerobra prática de muitos autores, conforme destacara o historiador francês. Para esses, à históriacaberia não apenas abordar a formação da nacionalidade no processo de expansão da fronteirae das correntes de povoamento. Buscavam algo mais, uma espécie de segredo oculto ou desentido da formação brasileira, e nessa busca a instituição escravista emergia com novossignificados.Desse ponto de vista, o artigo de Hauser nos Annales, ainda que sem se referir aomovimento (talvez por desconhecê-lo), de certa forma antecipava algumas de suas questões.A fazenda, este tipo clássico, com suas usinas de transformação ou engenhos, são uma organizaçãosenhorial (não feudal, porque ela não conhecia nem a fidelidade nem o laço pessoal entre vassalo esuserano) que não pôde se constituir a não ser por causa do trabalho escravo. (...) Este modo deexploração nascido da escravidão, formatado pela escravidão e cuja força continua a modelar acivilização rural do país depois da abolição, poderá ou não se acomodar com as formas evoluídas docapitalismo e do salariado? Interrogações que o observador não pode deixar de se colocar com algumaangústia.100Como bem destacou Luiz Felipe Alencastro em artigo sobre o historiador francês, a questão setornaria central aos debates políticos e intelectuais brasileiros nas décadas que se seguiram.Colonização e escravidão na historiografia brasileira: mudanças de paradigmasEm 1951, Sérgio Buarque de Holanda publicou no Correio da Manhã, em um caderno especialdedicado à cultura brasileira, um memorável artigo sobre O pensamento histórico no Brasilnos últimos 50 anos (1900-1950).101Começava, é claro, com os Capítulos de história colonial de Capistrano de Abreu,publicados em 1907, que considerou como obra que diverge fundamente de todas as anteriorestentativas de mesmo tipo. Nela, os aspectos mais nitidamente políticos e os que dependem dapura ação individual, dificilmente redutíveis a qualquer determinismo, cedem passo a outros,aparentemente humildes e rasteiros, que mal encontravam guarida na concepção tradicionalda história.Seus muitos discípulos, porém, apenas parcialmente teriam seguido o programa derenovação. O exemplo mais fecundo teria se dado na investigação erudita e na publicaçãocomentada de documentos e textos de época. Como já visto, movimento fundamental notrabalho historiográfico por toda a primeira metade do século XX. Paralelamente a ele, osestudos biográficos continuaram respondendo pela maior parte dos trabalhos históricos,especialmente no que se referia ao século XIX.102 Pontos também destacados peloshistoriadores franceses. Feita por um historiador brasileiro, a resenha é mais abrangente,especialmente sobre a produção de história regional.103Como fizera Coornaert, colocou também em destaque os ensaios de investigação einterpretação social que passaram aos poucos a empolgar numerosos espíritos... mesmo queainda se situassem na periferia dos estudos históricos em sentido restrito.Chamou-os estudos de formação e reconheceu que em numerosos deles encontra-seinsistente o apelo àquilo que um ensaísta norte-americano denomina o “passado utilizável”,para a composição de quadros empolgantes que se apresentam ao mesmo tempo comoterapêutica ideal para todas as nossas mazelas.104Por outro lado, muitos abriram sendas para um tipo de pesquisas que nossos historiadoresmal tinham praticado.Entre esses, pôs em relevo a renovação conceitual de obras como Populações meridionaisdo Brasil, de Oliveira Viana, e Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre, comparando asduas abordagens. Em oposição ao determinismo biológico do primeiro, enfatizou a abordagemculturalista, inspirada no difusionismo de Frans Boas, do segundo, que colocara em destaqueas repercussões sociais para a formação do Brasil do triângulo representado pela famíliapatriarcal, a grande lavoura e o trabalho escravo.Modestamente, não citou Raízes do Brasil. Concluiu o arrolamento das obras de formaçãocom a análise de Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr. (1942).A inquirição histórica baseia-se aqui num critério interpretativo fornecido pelas doutrinas domaterialismo histórico. Fiel, todavia, aos princípios teóricos que assenta, o estudo do sr. Prado Júniorlocaliza muito mais diretamente os problemas econômicos, que lhe parecem, em última instância, osdecisivos para a elucidação do passado e do presente. E essa ênfase ganha pela economia aponta parauma direção que tendem a tomar, cada vez mais, entre nós, as pesquisas históricas, abrindo-lhesterritórios até aqui mal explorados.Uma boa ideia sobre a extensão da abertura desses novos territórios ao iniciar-se a segundametade do século passado pode-se encontrar nos dois primeiros volumes da História geral dacivilização brasileira, dedicados ao Brasil Colonial, organizados sob a direção do mesmoSérgio Buarque de Holanda e publicados em 1960.105Na organização da obra, a periodização proposta ainda dialoga diretamente com Varnhagene Capistrano, com o primeiro volume abordando o descobrimento e a expansão territorial, atéas guerras holandesas, e o segundo, de título Administração, economia e sociedade, abarcandoda restauração portuguesa às inconfidências. Toda uma narrativa da história colonial,construída ao longo de décadas pelo trabalho historiográfico, estava implícita nessaorganização. O colonial se expressava na constituição do futuro território nacional a partir daexpansão portuguesa e tinha, por resultado, o surgimento de uma nova sociedade, brasileira,constituída já em meados do século XVII e que caminhava para a independência em finais doséculo XVIII. Assim, se no primeiro volume tem-se a ideia de movimento, de expansãoterritorial, de guerra e aliança com os povos originários, de disputas da terra com outroseuropeus, no segundo o que prevalece é a ideia de uma sociedade colonial constituída, comvida espiritual, letras, artes, ciências e diferentes áreas socioeconômicas, nas quais a escravidãoe o monopólio se apresentam como instituições centrais.A história econômica e social mereceu uma seção em separado no segundo volume. Nela, amaioria dos capítulos dialoga com uma tradição de história econômica já bem constituída noBrasil desde Roberto Simonsen (1938). O próprio Sérgio Buarque de Holandaescreve sobre asregiões mineradoras. O artigo sobre a escravidão africana e o tráfico atlântico, de MaurícioGoulart, é baseado em livro que ainda hoje é referência sobre o tema, publicado em 1949, edesenvolvido em diálogo direto com as pesquisas anteriores de Calógeras e Taunay.106 AliceCanabrava e Teresa S. Petrone, escrevendo sobre a grande propriedade e as zonas de criaçãode gado, antecipavam as abordagens de história social que se tornariam predominantes poucodepois.107 De todo modo, pode-se considerar que a escravidão como problema historiográficoprincipal só se configurava nos capítulos de Maurício Goulart e Alice Canabrava. Ahistoriografia sobre o protesto escravo, que já contava com o livro clássico de Edson Carneirosobre Palmares,108 ainda não se incorporava plenamente ao campo acadêmico e estava defora.109 A obra se estruturava com base no campo historiográfico mapeado por Holanda dezanos antes. Não permitia perceber a revolução historiográfica que estava por vir.As décadas de 1960 e 1970 viram serem transformados os paradigmas das ciênciashumanas e sociais em todo o mundo e tal impacto seria especialmente grande no Brasil, ondese vivia uma conjuntura de extrema efervescência política e social.No auge da guerra fria em termos internacionais, em um contexto sociopolítico fortementepolarizado entre direita e esquerda, voltava a ser grande a tentação de fazer obra prática.Foi nesse contexto que as chamadas obras de formação dos anos 1930 e 1940 tornaram-se,como Coonnaert e Sérgio Buarque de Holanda de certa forma previram, importantes matrizesde renovação historiográfica. Podemos tomar como marco acadêmico da mudança o prefáciode Antônio Cândido (1967) à 5ª edição de Raízes do Brasil, do próprio Sérgio Buarque deHolanda, que de certa forma canonizou a tríade Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda eCaio Prado Jr. como intérpretes do Brasil. 110Creio ser legítimo afirmar que, para além do contexto estruturalista que se tornoupredominante em termos internacionais, apropriações combinadas das obras de Gilberto Freyree Caio Prado Jr. foram em grande parte responsáveis pela generalização de uma perspectivamonolítica em relação ao período colonial, fundada no binômio casa grande e senzala voltadopara a produção de artigos tropicais para o mercado europeu, que a partir de então passou apredominar no fazer histórico. Apesar de frequentemente tomados como antagônicos, nesseaspecto específico, os dois autores foram alvo de apropriações complementares em muitossentidos.Do ponto de vista da influência de tais intérpretes no fazer historiográfico, pode-seconsiderar, curiosamente, que a obra do próprio Sérgio Buarque de Holanda teve um impactorelativamente menor, por manter, em grande medida, a perspectiva historista da historiografiaanterior. A historicidade e a diferença entre as épocas, procurando evitar os riscos doanacronismo, estão presentes nos ensaios de Raízes do Brasil, obra de formação, e sãocaracterísticas centrais da produção posterior mais propriamente historiográfica, comoMonções ou Visões do paraíso.111No novo contexto, de fato, os profissionais da história ficaram inicialmente em segundoplano. Foi tempo de grande desenvolvimento da sociologia e da economia, responsáveis emgrande medida pela renovação do discurso histórico no período.Foi grande a repercussão da publicação de Formação econômica do Brasil (1959), de CelsoFurtado, ex-integrante da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e com atuaçãode destaque no governo Juscelino Kubitschek, no pensamento social brasileiro e no campohistoriográfico em particular. Do ponto de vista da história econômica, a antiga visão dosciclos econômicos de Roberto Simonsen se associava ao sentido da colonização de Caio PradoJr, engendrando um modelo teórico retrospectivo capaz de resumir o movimento de toda aeconomia colonial.112Da sociologia viria a principal reformulação das abordagens sobre a história da escravidãopela chamada escola sociológica paulista, conjunto de estudos sobre a passagem da escravidãoao trabalho livre desenvolvidos sob a liderança de Florestan Fernandes.113 A crítica a GilbertoFreyre, desenvolvida pelo conjunto dos trabalhos, contrapunha à visão hierárquica, masintegrada, da casa grande e da senzala freyreanas o nexo mercantil de constituição daescravidão moderna no Brasil e sua dependência do tráfico atlântico. Nesse sentido, o sistema,em vez de doce, como queriam Hauser e Freyre, teria um caráter quase genocida, dada amagnitude do processo de transferência de força de trabalho colocado em curso, a baixíssimaesperança de vida dos recém-chegados e dado o decréscimo natural da população escravizadasem o estímulo do tráfico. Da força dos dados quantitativos sobre o tráfico, pela primeira vezcolocados no centro da interpretação, resultava contundente denúncia política. Deles sededuzia também a condição de anomia da população escravizada sobrevivente e de seusdescendentes, que os inseria em desvantagem na sociedade de classe em formação.Do ponto de vista da cultura histórica universitária, sob influência das novas abordagenseconômicas e sociológicas, o nexo entre casa grande/produção de exportação esenzala/trabalho escravo consolidou-se como eixo principal da vida econômica e cultural doBrasil colônia e o processo de emancipação política e a transição do trabalho escravo ao livrecomo principais problemas de pesquisa a serem enfrentados. Na Universidade de São Paulo,então único centro de pós-graduação em história do país, a obra de Emília Viotti da Costa éexemplar da renovação da pesquisa histórica sob esse novo arco de questões.114Por outro lado, a formação do mundo colonial estaria dada desde o sentido da colonização,como propusera pioneiramente Caio Prado Jr. Por algum tempo, tornaram-se bastante raros osestudos específicos sobre os séculos XVI e XVII, foco principal das gerações anteriores.Mas nem toda a renovação se fazia a partir das universidades. As discussões políticas eintelectuais no interior de organizações políticas, institutos de pesquisa e partidos políticosrepercutiam diretamente no fazer histórico. Das discussões políticas entre economistas esociólogos, e também das reflexões sobre a derrota das esquerdas na América Latina nasdécadas de 1960 e 1970, emergiriam formulações teóricas de grande influência no processo derenovação historiográfica em curso.115Do pensamento marxista mais ortodoxo, a interpretação sobre o caráter feudal da estruturaagrária do país, defendida por intelectuais ligados ao Partido Comunista, teve impactoduradouro. Relegou, por exemplo, a um relativo segundo plano o estudo da escravidão emmuitas abordagens sobre o Brasil colonial, para enfatizar a análise da estrutura fundiária dopaís.116Também de inspiração marxista, a perspectiva de análise pioneiramente apresentada noBrasil por Caio Prado Jr. (1942) e em termos internacionais por Eric Williams, no livroCapitalismo e escravidão (1944), considerando a escravidão atlântica como fruto da expansãodo capitalismo comercial europeu, se tornaria predominante no ambiente acadêmicointernacional nos anos 1960 e 1970.117 Também nesse caso a escravidão como forma específicade exploração acabava pouco enfatizada, era uma entre outras formas de trabalho compulsórioproduzidas pela expansão do capitalismo comercial nas Américas.No Brasil, tais divergências informavam também diferentes projetos políticos no campo dopensamento de esquerda, relativos ao caráter da chamada revolução brasileira.118 Nos anos1970, ainda ocupariam lugar de destaque em apaixonadas discussões teóricas no interior dasciências sociais.Para a história colonial, o livro de Fernando Novais Portugal e Brasil na crise do antigosistema colonial (1979) é a principal tradução de tal movimento no processo de renovação dacultura histórica universitária do período.119 Cultura histórica cada vez mais caracterizada pelointercâmbio com a sociologia e a economia, por um crescenteestruturalismo e pela influênciamarxista.É nesse contexto que se estruturaria uma espécie de terceira via no pensamento marxista,em forma de crítica à falta de ênfase na singularidade interna das sociedades escravistasamericanas e da ênfase excessiva na produção de excedentes das análises tributárias da noçãode capitalismo comercial.120Com base em tese defendida na França sobre a Guiana Francesa, sob orientação de FredericMauro,121 mas também em diálogo com a renovação sobre a história social da escravidão nosEstados Unidos e no Caribe, também de inspiração marxista, Ciro Cardoso colocou em xequeo relativo descaso com a escravidão e o escravo nas abordagens históricas da sociedadeescravista colonial brasileira, seja quando tomada a partir da perspectiva de relações feudais ousemifeudais, mas também quando as abordagens se detinham na predominância do capitalismocomercial. Sua inserção no sistema universitário brasileiro a partir de 1978, na UniversidadeFederal Fluminense, trouxe ao debate concepções como Afro-América e a noção de modo deprodução escravista colonial. Propunha, especialmente, o desenvolvimento de pesquisas sobreo funcionamento da sociedade escravista e colonial, pensada como uma sociedade específica, enão como um quintal da Europa.122Tal crítica mantinha o caráter estrutural da abordagem sobre o período e a ênfase nadependência comercial, embutida na palavra colonial. De uma perspectiva teóricarelativamente diferente, o livro de Jacob Gorender O escravismo colonial exacerbaria aindamais a dimensão estrutural predominante nas discussões correntes em relação ao tema até osanos 1980.123Apesar de alguma discussão sobre as condições de surgimento da plantation escravista,especialmente em torno da afirmação de Fernando Novais de que o tráfico explicaria apredominância da escravidão africana, e não o contrário, as pesquisas desenvolvidascontinuavam a se concentrar nos séculos XVIII e XIX. Era em bases teóricas que seestruturava a afirmação de Novais, contestada por Ciro Cardoso com suporte em argumentoslógicos e nas fontes publicadas conhecidas, que enfatizavam o desastre demográficoexperimentado pela população indígena no século XVI.Na segunda metade dos anos 1970 e princípios da década de 1980, os debates teóricossobre os modelos explicativos da sociedade colonial formaram, nos cursos de graduação e pós-graduação em história então em expansão, toda uma nova geração de historiadores. Com eles,uma nova cultura histórica, quase completamente dissociada do historismo predominante até adécada de 1960. Bem informada das discussões teóricas internacionais no campo das ciênciassociais em sentido amplo, com influência marxista, preocupada com a construção de modelosteóricos e interpretativos de viés estruturalista e pouco afeita à pesquisa empírica. Empiristaera uma espécie de jargão pejorativo, atributo da historiografia tradicional.Metodologias inspiradas na escola dos Annales francesa ou na história social inglesa eestadunidense já tinham relativa presença no país desde as missões francesas dos anos 1930 epermitiam uma perspectiva crítica à historiografia tradicional. Mas só prevaleceram comoelemento constituinte da formação do historiador brasileiro com a consolidação efetiva dosistema de pós-graduação no país na década de 1980.No processo, muito da memória do conhecimento histórico produzido no período anteriorse perdeu. A pesquisa sobre a escravidão indígena, por exemplo, só viria a ser retomada nofinal do século XX, quase sem dialogar com a produção historiográfica anterior sobre o tema.O desenvolvimento recente da historiografia da escravidão e as interpretações do período colonial no BrasilComo é bem conhecido de todos, foi intenso o desenvolvimento da pesquisa histórica a partirda criação de um sistema de pós-graduação nas universidades brasileiras na década de 1970 esua consolidação na década seguinte. Tal crescimento se fez estreitamente articulado àsdiscussões e práticas metodológicas predominantes na pesquisa acadêmica em nívelinternacional.A história social de inspiração francesa já tinha certa tradição no país, mas a formulação denovas questões e a experimentação de novas metodologias intensificaram-se no período. Apercepção da existência de uma sociedade escravista se consolidou, mesmo que questionandoou simplesmente abandonando as perspectivas estruturalistas presentes nas discussõesexcessivamente teóricas sobre sistemas econômicos e modos de produção em voga nomomento anterior.124 Sob influência da história serial francesa e também da história socialinglesa, novas fontes e metodologias foram incorporadas. Na verdade, uma nova problemáticade pesquisa foi definitivamente estruturada, a da experiência da gente comum e, no limite, doescravo, como agentes da história. Nos anos 1980, a história social da escravidão consolidou-se como novo campo de pesquisa.125Na consolidação desse campo, foi importante a presença de estrangeiros, especialmenteestadunidenses, atuando como pesquisadores ou professores/pesquisadores no país e/ourecebendo historiadores brasileiros com bolsas de doutoramento.126Paralelamente, a história colonial foi um dos campos de pesquisa que mais se renovaram,influenciado pela virada dos Annales para a história cultural e das mentalidades, ainda queconservando uma abordagem estrutural do período. Combinados, Caio Prado Jr. e GilbertoFreyre mantiveram-se como referenciais importantes nos principais trabalhos do período.127Configuraram-se, desde então, duas historiografias apenas eventualmente conectadas.Extensivos balanços historiográficos da produção recente sobre a história social da escravidãono Brasil (Herbert Klein e João José Reis) e a historiografia sobre o Brasil colonial (StuartSchwartz), a serem em breve publicados nos Estados Unidos em livro sobre a produçãohistoriográfica brasileira, dão bem a medida da consolidação de campos de pesquisarelativamente paralelos.128O texto de Reis e Klein consegue uma visão bastante abrangente do desenvolvimentorecente do campo historiográfico dos estudos sobre a escravidão no Brasil. O balanço de StuartSchwartz tem igual abrangência e propõe uma sugestiva subdivisão temática do campocolonial. Começa pela história indígena, conjunto que ultrapassa cronológica e espacialmenteas fronteiras do Brasil colonial. Em seguida, aborda a história da escravidão (africana) quetambém se configura além daqueles marcos, em diálogo com a historiografia sobre a diásporaafricana no Atlântico. Conclui com a história da administração (governando colônias), área quese desenvolve fortemente conectada à historiografia dos Impérios europeus da época modernae em intenso diálogo com a pesquisa histórica em Portugal. Antes, porém, abre uma subdivisãotemática para o que chama de novas abordagens de história social e cultural, suponho que doBrasil colonial. Nessa proposta de mapeamento, as historiografias sobre a expansão egovernabilidade do Império português, a diáspora africana no Atlântico e a história indígenaconfluem — quase à moda de Martius — para construir uma nova historiografia sobre asociedade colonial. A identidade nacional e sua historicidade continuam, em certa medida, ainformar a subdivisão do campo acadêmico.Para concluir o capítulo, tendo por pano de fundo a historiografia citada nos dois balançosconsiderados, proponho-me a inverter o problema inicialmente formulado. Qual a contribuiçãoda história social da escravidão para repensar o Brasil colonial e qual o lugar do colonial naprodução recente sobre a história social da escravidão no Brasil?O centenário da abolição, em 1988, constituiu-se em marco incontestado do surgimento deuma nova historiografia em relação à escravidão, a africana em especial.129 Creio que podemosconsiderar duas ordens de questões como principais responsáveis pela renovação: a históriaeconômica e social e a chamada história vista de baixo.130Comecemos com a história econômica e social. Seu desenvolvimentobasta lembrar da Guerra dos Bárbaros, ocorrida na segunda metade do século XVII,no norte do Estado do Brasil (ver capítulo três do segundo volume). Provavelmente, asrelações daquelas populações católicas com os gentios americanos interferiam na hierarquiasocial, no imaginário e na economia da América lusa.Esta interação talvez ajude a entender o ethos de uma nobreza da terra do Rio de Janeiro,que via na defesa e na ocupação das terras um dos seus deveres para com a monarquia e arepública, e que, para tanto, instalava engenhos de açúcar em áreas distantes dos povoados eajudava na construção de fazendas de religiosos próximos ao sertão. No caso do norte doEstado do Brasil, temos a fixação de aldeamentos chefiados pelas linhagens indígenasCamarão e Arcoverde.3Por seu turno, como afirmei acima, aqueles números sobre a população católica e aextensão do território, em tese sob a tutela da coroa portuguesa, conferem uma base maissólida para entender o realismo vivido pela sociedade americana lusa do século XVII. Oumelhor, aqueles números nos relatam a dinâmica de tal sociedade, ou ainda o ritmo desedimentação de relações sociais que costumamos chamar de escravistas e estamentais. Afinal,uma coisa é viver numa sociedade católica, estamental e escravista, cuja Sé de seu Bispadotinha apenas três mil almas, como ocorria em 1687. Outra coisa, bem diferente, será quando,em 1787, a mesma Sé transformou-se em um centro mercantil, capaz de, em apenas um ano,receber do tráfico atlântico de cativos cerca de 10 mil almas.4 Entre o ano de 1687 e 1787,portanto, a sociedade estamental e escravista, base do Bispado do Rio de Janeiro, adquiriu umnovo ritmo social e econômico com a multiplicação da população, a diversificação dosmercados locais e as ligações com o Atlântico. Provavelmente, a sociedade, entre 1687 e 1787,permaneceu estamental e escravista, porém entre estes períodos ela viveu mudançassubstantivas e portanto, em 1787, apresentava características sociais diferentes de um séculoatrás. Basta lembrar que na última data os índios bravos do sertão circundavam uma praçamercantil que recebia do Atlântico ondas de minas, benguelas, cabindas, além de minhotos,açorianos etc.*Apesar de a América Lusa, entre o Seiscentos e o Setecentos, ser pouco visitada porhistoriadores profissionais, alguns dos debates da atualidade, que envolvem políticas públicas,têm por base argumentos retirados do passado colonial, basta lembrar as discussões sobreescravidão, mestiçagem ou acesso à terra, cenário esse que, no mínimo, é curioso. Sendo maispreciso: ao menos desde meados do século XX tornou-se prática justificar políticas públicassobre cotas raciais e reforma agrária tendo por objetivo solucionar problemas gerados pelaescravidão e estrutura fundiária coloniais. Entretanto, pouco se sabe sobre as práticas de acessoà terra do século XVII e o conhecimento sobre a escravidão deste século e do seguinte, até omomento, é precário.5Enfim, são necessários ainda vários trabalhos com base empírica, combinadas a umrefinamento teórico e metodológico, para conhecermos melhor três séculos dos nossosquinhentos anos. Nesse momento, cabe insistir na necessidade também de uma cuidadosametodologia de pesquisa, que consiga driblar a carência de séries completas de fontes para ostempos coloniais. Isto é, coleções de fontes que em outras sociedades servem de base paraanálise de seu passado, no caso brasileiro praticamente não existem. Lembro, por exemplo, dasfontes cartorárias, fiscais e camaristas, documentos que serviram para o estudo de váriassociedades americanas e europeias, e que no Brasil, salvo exceção, foram perdidas.6 Porconseguinte, trata-se de criar procedimentos metodológicos capazes de reverter tal cenário, ouainda é necessário inventar fontes ou reinventar as já conhecidas através de uma novaabordagem. Refiro-me, por exemplo, às fontes eclesiásticas. Só nos últimos anos, o uso dessesdocumentos ultrapassou o campo da demografia e começou a servir de base para estudos deHistória Social e Econômica.7 Nesse sentido, o cruzamento dos assentos paroquiais debatismos com os de casamentos e os de óbitos, além de informarem sobre o padrãodemográfico de uma região, é capaz também de recuperar traços da hierarquia social, daestrutura agrária e ainda esclarecer estratégias dos grupos sociais e de suas orientaçõesvalorativas. Para isso, são necessários refinamento teórico e metodológico, conhecimento deprocedimentos de informática. Sobre esse último ponto, não custa sublinhar que o trabalhoautoral, leia-se, que avança na fronteira do conhecimento, só é possível através de equipes deinvestigação.Por seu turno, apesar das lamúrias acima, nesses últimos tempos há vários motivos parasermos otimistas, quando olhamos os estudos recentes sobre a América lusa do AntigoRegime. Como adiante o leitor poderá ver com mais detalhes, a década de 1990 presenciou asprimeiras teses de doutorado dos programas de Pós-Graduação, instalados no país nas décadasde 1970 e 1980.8 Essas teses demonstraram, com suas sólidas investigações empíricas, afragilidade de várias antigas certezas, na verdade hipóteses, da tradicional historiografiacolonial. Esse é o caso da nova leitura proporcionada para as relações metrópole-colônia e doslinks entre economia colonial e Europa de fins do século XVIII, quando Manolo Florentinodemonstrou, em sua tese de doutorado, que o controle do tráfico atlântico de escravos da épocanão estava nas mãos do capital mercantil europeu, mas de negociantes residentes na Américalusa.9 Na mesma ocasião, provei que outros segmentos da dita economia colonial também eramcontrolados pela mesma comunidade de negociantes da Praça do Rio de Janeiro.10 Além disso,nessa época, começou-se a demonstrar que a economia era mais do que uma plantationexportadora, existindo um circuito de mercados internos disseminados pela América.11 Oconjunto desses resultados colocou dúvidas em uma série de hipóteses sobre a dependência. Damesma forma, multiplicaram-se os estudos sobre a sociabilidade entre os cativos, a exemplo,ou sobre as famílias e a ação dos escravos, forros e pardos.12 Para tanto, basta lembrar a ideiade Hebe Castro sobre pardo, entendido não como cor, mas enquanto construção social, ou seja,produto de agências sociais.13 Temos ainda, entre outros, os trabalhos pioneiros de Laura deMello e Souza e de Ronaldo Vainfas, baseados nos processos inquisitoriais, sobre HistóriaCultural no século XVII.14Grande parte das investigações, mais acima citadas, teve como objeto o Rio de Janeiro eSão Paulo de fins do século XVIII e, principalmente, do século XIX. Apesar desse recortetemporal, aqueles trabalhos, inclusive o nosso, possuíam o velho vício e a arrogância datradição ensaísta brasileira, qual seja: a tentação de, a partir de investigações de apenas umcurto período e uma região, explicar, por meio de esquemas lógicos, o conjunto temporal dasociedade escravista da América lusa, inclusive o seu vasto período colonial (de 1500 a 1822).Porém, ao contrário das gerações anteriores, a nossa teve a seu alcance a relativamente vastadocumentação do século XIX, com as suas séries de fontes cartorárias e da justiça. Issopermitiu construir interpretações mais sólidas e, portanto, factíveis de serem testadas nosSeiscentos, por exemplo.Ainda hoje, os pesquisadores partem para estudar a América lusa profunda, com ideiasconstruídas para o século XIX. Talvez um bom exemplo disso sejam os estudos sobre elitessociais, plantations, mestiçagem, sociabilidades escravas e alforrias, o que é extremamenteválido, contanto que se tenha certo cuidado para não cair, nas palavras do professor FernandoNovaes, no pior dos pecados do historiador: o anacronismo. Ao lado daquele procedimento, jácomeçam a surgir também investigações predispostas a descobrirem lógicas sociais diferentesdas do Oitocentos. No caso, tendo como referência as ferramentas teóricas com as quais associedade europeias, africanasna década de 1980 sefez em grande medida colocando no centro da investigação a experiência da gente comum. Anova ordem de preocupação resultou em uma renovação metodológica a partir do uso de fontesseriadas, como censos regionais, fontes cartoriais e paroquiais, nas mais diferentes regiões dopaís. Com novas questões e novas fontes, as pesquisas lançaram luz sobre a diversidadeeconômica da sociedade escravista, enfatizando a presença de formas camponesas, de ummercado interno, e a disseminação do acesso ao trabalho escravo, pelo menos até a extinçãodefinitiva do tráfico atlântico em 1850.131Muitos desses estudos vieram corroborar e emprestar uma dimensão ampliada à análisepioneira de Stuart Schwartz (publicada nos Estados Unidos em 1981) sobre a vigência noBrasil do final do período colonial de um padrão de posse de escravos bem mais modesto epulverizado do que até então a historiografia acreditava, mesmo em áreas de ponta daeconomia escravista.132 A descoberta tinha consequências não apenas econômicas, mastambém sociais e culturais, especialmente no que se refere à legitimidade da propriedadeescrava e às formas de inserção econômica e social da população livre.Incidia também diretamente sobre determinadas construções historiográficas sobre o nexocolonial, especialmente aquelas assentadas nas formulações clássicas de Caio Prado Jr. sobre osentido da colonização, quando enfatizavam exageradamente a predominância da produção deexportação sobre os demais setores econômicos e a condição quase inexistente do mercadointerno. Por outro lado, do ponto de vista da história da escravidão, a condição colonial perdiaimportância, descolando-se para a extinção do tráfico atlântico a principal clivagem deperiodização enfatizada pelos pesquisadores.Principalmente, a crítica pioneiramente formulada por João Fragoso e Manolo Florentino àpressuposição do controle do tráfico negreiro pela metrópole portuguesa como forma deacumulação primitiva de capitais na Europa se mostrou definitiva.133 O controle, porcomerciantes sediados no espaço colonial, do comércio de cabotagem e do comércio deescravos diretamente com a África configurou novo quadro empírico a partir do qual asdiscussões teóricas passaram a se desenvolver, resultando em nova ênfase à historicidade doprocesso de colonização. Bem como em uma relativa desterritorialização da história do Brasil,com a incorporação da África e do Atlântico Sul.134Nesse contexto, e em grande parte em função das pesquisas em história econômica e socialda escravidão, mesmo as abordagens inspiradas na noção do antigo sistema colonial tenderama se redefinir, procedendo a uma relativa recuperação dos quadros de Capistrano de Abreu, quedatava a consolidação do sistema colonial no século XVIII.135Por outro lado, o rompimento com o paradigma metrópole-colônia fez com quehistoriadores econômicos da sociedade escravista, como Fragoso e Florentino, seaproximassem da história política e da nova historiografia portuguesa, com resultadossignificativos, especialmente a possibilidade de problematizar historicamente as incertezaspresentes no processo de conquista e construção de sociedades coloniais a partir da expansãoportuguesa da época moderna.136Impacto semelhante se deu no campo da história da família escrava e da históriademográfica. Registros de batismo, casamento e óbito de escravos foram explorados de formaa ampliar não apenas os conhecimentos sobre questões clássicas da história demográfica, mastambém formas de parentesco ritual, práticas de nominação entre cativos e as relações entreestabilidade familiar e tamanho das escravarias.137 Como resultado, o modelo de famíliapatriarcal que caracterizaria a sociedade colonial, segundo Gilberto Freyre, foi duramentecontestado.Também aqui não apenas a subordinação da família escrava à família senhorial preconizadadesde Gilberto Freyre era colocada em xeque, mas também a formulação de muitos dos seusprincipais críticos, especialmente os ligados à chamada escola sociológica paulista, quecomungavam com o modelo freyriano a crença na anomia das estruturas familiares e parentaisdos cativos consideradas em separado das estruturas senhoriais.138Sob a influência da obra de E.P. Thompson e da história vista de baixo,139 o trabalhometodológico com processos cíveis e criminais também abriu novas fronteiras de análise,diretamente engajadas na crítica ao pressuposto da alienação e anomia dos cativos nasociedade escravista.140 No final dos anos 1990, o parentesco escravo tinha se tornado elepróprio campo de pesquisa, gerando polêmicas específicas.141O impacto nas percepções do colonial foi durável. Sob ataque, o conceito de patriarcalismose mantém presente na historiografia significativamente ressignificado, pensado como ideal aser atingido ou associado a práticas de articular e hierarquizar arranjos familiares como formade organização social.142Na perspectiva de resgatar a agência escrava, a história social da escravidão se desenvolveude forma articulada com a história indígena. Os processos de incorporação e construção deidentidades das populações originárias, como escravos, administrados, aldeados ou súditos,foram muitas vezes abordados em chave teórica e metodológica comum à incorporação dosafricanos escravizados, produzindo leituras renovadas do processo de expansão da colonizaçãoportuguesa na América.143 Em diálogo com a historiografia internacional sobre a diásporaafricana no Atlântico, também os contextos de origem dos africanos escravizados tornaram-seobjeto de pesquisa. Na última década, o impressionante avanço da pesquisa em história daÁfrica pré-colonial foi rapidamente incorporado pela historiografia sobre o Brasil, construindonovos sentidos para a especificidade colonial.144Obviamente, nesse novo contexto, conhecer a história das instituições coloniais em relaçãoà escravidão é absolutamente essencial. Já no final dos anos 1980, Campos da violência, deSilvia Lara, pôs em destaque a centralidade de concepções próprias do antigo regime portuguêspara a construção da legitimidade escravista no Brasil e a importância da história do direitopara uma abordagem renovada da história social da escravidão.145A perspectiva ali proposta frutificaria. O pensamento e as práticas jurídicas nas sociedadesescravistas formam hoje um campo específico de pesquisa.146 Com importantes contribuiçõespara as pesquisas sobre a estrutura jurídica da expansão portuguesa, pioneiramentedesenvolvidas por António Manuel Hespanha, que a princípio pouco abordavam aescravidão.147 O trabalho já desenvolvido tem iluminado a compreensão das relações entre aCoroa portuguesa, os diferentes povos das conquistas e os próprios escravizados,148 ascondições de legalidade/legitimidade da escravidão indígena e da escravidão africana,149 asrelações entre sociedade corporativa e escravidão, entre liberalismo e escravidão e, no limite,entre escravidão e cidadania no contexto da independência política.150A ênfase na dinâmica histórica e o temor do anacronismo alargaram os territóriosfrequentados pelo historiador da escravidão. Nesse sentido, a pesquisa em história social daescravidão se fez muitas vezes de forma integrada com a história do direito e a históriapolítica, problematizando a própria ação colonizadora e as condições de invenção dassociedades escravistas americanas no processo de expansão comercial europeia no Atlântico.151Não se trata de busca das origens, mas de pensar o passado como portador de futuros quenão estavam inscritos em nenhum sentido prévio. Tal proposição abre novas pautas depesquisa sobre as experimentações políticas, econômicas e sociais que produziram a grandetransformação: o surgimento de sociedades escravistas relativamente estáveis, com mão deobra continuamente importada da África, do outro lado do Atlântico. E de entender também asdiferenças entre elas.152Sugeri, em outro texto, que a primazia portuguesa no sistema escravista do Atlântico foiuma possibilidadeacionada a partir da presença prévia da escravidão e do comércio deescravos, como instituição e prática plenamente integradas à lógica corporativa de expansão doantigo regime português. E também às sociedades africanas envolvidas no processo, com seusantigos regimes peculiares, mas com gramáticas políticas intercambiáveis.Outro aspecto específico da historiografia da escravidão, com importante impacto naspercepções do colonial, é o tema do acesso à alforria. Se os estudos sobre as manumissões têmpresença relativamente antiga na historiografia brasileira, sofreram uma inflexão de ordemqualitativa e quantitativa considerável nos últimos anos.As pesquisas têm quantificado as doações de alforria e as formas de autocompra,esquadrinhado seu uso enquanto política de domínio senhorial e acompanhado aspossibilidades de mobilidade social dos livres de cor e os trânsitos identitários queacompanhavam o processo.153 Abordaram também o discurso dos administradores coloniaissobre a multidão de gente de cor que se avolumava. Na última década, a racialização comoproblema historiográfico se estruturou como campo de pesquisa que já apresenta algunsresultados expressivos. A alforria podia ser chave de legitimação da ordem escravista naAmérica Portuguesa, mas mostrou-se potencialmente explosiva para a manutenção dashierarquias coloniais. A igualdade entre as cores esteve na base do radicalismo popular à épocada independência, sem que a escravidão como instituição se visse ameaçada no mesmodiapasão.154A partir dos debates historiográficos abertos pelas novas pesquisas sobre a história social daescravidão no período colonial, destaco, portanto, uma renovada preocupação com ahistoricidade dos processos, que empresta novos significados à história política em sentidoestrito. Sem voltar ao velho historismo de problema único: o surgimento da nação entendidocomo construção essencializada, cada vez mais a dinâmica histórica dos processos estudados ea explicitação da questão formulada pelo historiador tornam-se elementos chaves a possibilitarum denominador comum às discussões historiográficas.A consolidação do sistema de plantation nas Américas representou uma revoluçãocomercial e demográfica que emprestou ao tráfico atlântico e à dominação escravista umaescala até então desconhecida, mas que se processou ao longo de quase dois séculos deconflitos e incertezas.155 Para além da violência que lhe é constitutiva, novas leituras eimprovisações a partir das conformações jurídicas e institucionais preexistentes mantiveram-secomo base de legitimação e campo de conflito nas novas sociedades escravistas emconstituição. Sociedades coloniais, não apenas porque estavam submetidas ao controle políticode uma metrópole europeia, mas porque continuamente em processo de colonização emsentido estrito, com a incorporação de novos colonos europeus, escravos estrangeiros epopulações autóctones submetidas.O livro Generations of Captivity, de Ira Berlin (2002), teve um impacto significativo nahistoriografia da escravidão atlântica. Primeiramente por seu aspecto de redescoberta dahistoricidade do processo escravista nos Estados Unidos, rompendo com uma perspectivaestrutural e quase atemporal da escravidão oitocentista estadunidense e sua apreensãoracializada. Mas também por evidenciar os ganhos de se enfatizar uma perspectiva atlânticapara entender experiências nacionais.156 Outras polêmicas se seguiram ao trabalho, mas odiálogo com a historiografia da escravidão nas Américas, em seus diferentes contextoscoloniais, e com a história da África, em particular, abre perspectivas importantes para umaabordagem renovada da tríade colonial/nacional/imperial.Radicalizar o movimento de descentramento já iniciado pelas novas perspectivas depesquisa da expansão imperial portuguesa e ampliar as perspectivas em curso de conectarhistoriografias, incorporando especialmente a história da África e a história indígena, parece-me caminho promissor para romper definitivamente com antigos fantasmas, legados pela longasobrevida da tradição imperial em Portugal e dos conflitos dela decorrentes.Entender as sociedades escravistas sob dominação colonial europeia como processo, nainterseção de diversas tradições e culturas políticas, formando-se constantemente através daconstituição de novos interesses, da articulação de redes de poder e da difícil consolidação denovas hierarquias sociais e estruturas de desigualdade, parece-me horizonte aberto aospesquisadores da história social da escravidão, do Império português e do Brasil colonial.Para concluir, acompanho Joseph Miller quando propõe mudar o ângulo da observação einvestigar a expansão imperial europeia e a formação das estruturas de dominação colonial daépoca moderna do ponto de vista das ações, instituições e estruturas políticas dos diversosEstados e povos que tomaram parte do ou foram submetidos ao processo da expansão.157 Aproposição pode abrir novas perspectivas. Não se trata de um novo modelo interpretativo paraabordar o colonialismo europeu ou a expansão lusa no atlântico sul em particular, mas de umadecisão estratégica do pesquisador, para obter novos ângulos de pesquisa. Vale a penaempreender a tarefa.BibliografiaABREU, J. Capistrano de. “Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro”. In:Francisco Adolfo de Varnhagen. História geral do Brasil. 4ª. edição integral, s.d., tomo primeiro, pp. 502-508. Originalmente publicado no Jornal do Commercio, 16-20/12/1878._______ . “Sobre o Visconde de Porto Seguro”. In: Francisco Adolfo de Varnhagen. História geral do Brasil.3ª edição integral, s.d., tomo terceiro, pp. 435-444. Originalmente publicado na Gazeta de Notícias, 21-22-23/11/1882._______ . “Livros e letras” [seção]. In: Ensaios e estudos: crítica e história, 4ª série. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira/Brasília: INL, 1976, p. 157. 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Frei Vicente do Salvador [1627], 7ª. ed., 1982.6. Cf. Capistrano de Abreu, 1907; ver também Fernando Novais, 1997; e Stuart Schwartz, 1997.7. Silvia H. Lara, 2007a, p. 23; Laura de Mello e Souza, 1997, p. 68.8. Especialmente Frank Tannenbaum [1946], 1992; e Gilberto Freyre, 1933.9. Francisco Adolfo de Varnhagen, 1854/1857; J. Capistrano de Abreu; 1907. Agradeço a Rebeca Gontijodiversas referências bibliográficas para o desenvolvimento desta parte.10. Émile Coornaert, 1936; Henri Hauser, 1937/1938; Sérgio Buarque de Holanda, 1950; Schwartz, 2008;Herbert Klein & João José Reis, 2008. À exceção de Sérgio Buarque de Holanda(como Capistrano de Abreu,figura de transição entre escolas historiográficas), procurei trabalhar com balanços publicados fora do país emveículos de excelência da historiografia internacional. A ideia é historicizar, na medida do possível, o diálogoacadêmico entre a produção brasileira e o debate historiográfico internacional.11. Francisco Adolfo de Varnhagen, 1854, folha de rosto.12. Ibidem, p. vii; Rodolfo Garcia, “Auxílios chronológicos para verificar as datas e os factos: PrincipaisTitulares do Estado do Brasil, elevado a principado por carta régia de 27 de outubro de 1645”. In: FranciscoAdolfo de Varnhagen, 3ª ed. integral, s.d., p. 300.13. Sebastião da Rocha Pitta [1710], 1880.14. Robert Southey, 1810/1817/1819. Sobre a obra, ver Maria Odila da Silva Dias, 1974.15. Francisco Adolfo de Varnhagen, 1857, seção LII; Francisco Adolfo de Varnhagen, 1981, p. 212. SobreVarnhagen e Southey, cf. Temístocles Cezar, 2007, p. 309.16. José Ignácio de Abreu e Lima, 1842; sobre o tema, Hebe Mattos, 2007; Selma Rinaldi de Mattos, 2007.17. Ferdinand Denis (1846); Alphonse de Beauchamps (1815).18. Cf. Capistrano de Abreu [1882], s.d., p. 435-444; José Honório Rodrigues, 1957, p. 75.19. Francisco Adolfo de Varnhagen, 1981.20. Sobre as críticas de época a Varnhagen, cf. Aureliano Leite, 1982, p. 15; Arno Wehling, 1999, cap. 8; eRebeca Gontijo, 2006, especialmente caps. 1 e 6.21. Joaquim Manoel de Macedo, 1865; Selma Rinaldi de Mattos, 2000.22. Francisco Adolfo de Varnhagen, s.d 3ª. ed. integral, 4ª ed., para o primeiro volume.23. Capistrano de Abreu [1878], s.d., p. 502-508.24. Arno Wehling, 1999.25. Francisco Adolfo de Varnhagen, 1854, folha de rosto.26. Karl Fridrich Philip von Martius, 1845; ver também Manoel Luis Salgado Guimarães, 1988, p. 5-27; eLúcia Maria Paschoal Guimarães, 1995.27. José Honório Rodrigues, 1957, cap. 5, p. 152-181; Stuart Schwartz, 1997, p. xviii-xix.28. Karl Fridrich Philip Von Martius [1845], 1991, p. 42-43. José Honório Rodrigues (1857), p. 162.29. Essa é a opinião de Capistrano de Abreu e José Honório Rodrigues. Arno Wheling afirma que o próprioVarnhagen negava essa assertiva. Arno Wheling, 1999, p. 200.30. Francisco Adolfo de Varnhagen, 1854, p. 182-183.31. Ibidem, seção XIV, p. 183-184.32. Ibidem, p. 184.33. Ibidem, p. 185.34. Francisco Adolfo de Varnhagen, 1857, p. 211.35. Francisco Adolfo de Varnhagen, “Discurso preliminar. Os índios perante a nacionalidade brasileira”. In:Francisco Adolfo de Varnhagen, 1857, p. XIV-XXVIII.36. Francisco Adolfo de Varnhagen, 1857, “Prefácio”, p. IX.37. Francisco Adolfo de Varnhagen, 1857, “Discurso preliminar...”, p. XVII.38. Ibidem, p. XVII.39. Ibidem, p. XXI.40. Ibidem, p. XXV-XXVI.41. Ibidem, p. XXIV.42. Ibidem, cap. XLII.43. Como texto legal cita as Ordenações Manuelinas: Como se podem enjeitar os escravos e bestas por osacharem doentes ou mancos e as Ordenações Filipinas: Quando os que compram escravos, ou bestas os poderãoenjeitar por doenças, ou manqueiras. Francisco Adolfo de Varnhagen, 1854, p. 181-182.44. Tratos y contratos de mercadores, Salamanca: 1569, cap. XV, p. 64 etc. por Fr. Thomas de Mercado, apudFrancisco Adolfo de Varnhagen, 1854, p. 262.45. Francisco Adolfo de Varnhagen, 1854, p. 178-182.46. Ibidem, p. 183.47. Ibidem, p. 181.48. Robert Southey, 1862.49. Luiz Felipe de Alencastro, 2000, cap. 5.50. Nelson Schapotchnik (1993), ao estudar a questão da narrativa na historiografia oitocentista e na obra deVarnhagen, em particular, recupera o debate sobre crônica e história.51. J. Capistrano de Abreu [1878], s.d., pp. 502-508. Capistrano escreveu dois textos sobre Varnhagen, o“Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro”, originalmente publicado noJornal do Commercio, 16-20/12/1878; e “Sobre o Visconde de Porto Seguro”, originalmente publicado naGazeta de Notícias, 21-22-23/11/1882. J. Capistrano de Abreu [1882], s.d., p. 435-444.52. José Honório Rodrigues, “Como nasceram os ‘Capítulos de história colonial’”. In: J. Capistrano de Abreu[1907], 1988, p. 13-19.53. Ao longo do tempo é possível perceber as mudanças na relação com o visconde de Porto Seguro, aprincípio visto como “o mestre, o guia, o senhor”. Em carta de 1917, por exemplo, concluía já possuir muitacoisa desconhecida pelo antecessor. Certa vez constatou: “Como ficam jocosas as páginas de Varnhagen,depois do que nós sabemos!” Mas, além de conhecer mais documentos do que o autor da História geral doBrasil (1854-1857), Capistrano também se orgulhava de interpretá-los melhor, como pode ser deduzido ao dizerque “Varnhagen era incapaz de inventar documentos, mas lia-os tão mal! Muitas vezes concluo de mododiferente dele; outras noto que ele deixa escapar o substancial para apegar-se ao acessório”... . Rebecca Gontijo,2006, p. 258. Ver também Daniel Mesquita Pereira, 2002.54. J. Capistrano de Abreu [18-10-1880], 1976.55. Idem [9-10-13 março 1880], 1976; e [1907] 1988.56. Idem [1899], 1988-1989; e José Honório Rodrigues, 1953, p. 136.57. J. Capistrano de Abreu [9-10-13 março 1880], 1976, p. 106.58. Idem [1907], 1988, p. 206.59. Ibidem, p. 58.60. Ibidem, p. 69-71.61. Ibidem, p. 98.62. Ibidem, p. 146.63. Ibidem, p. 96-98.64. Ibidem, p. 60.65. Ibidem.66. “Os primeiros negros vieram da costa ocidental e pertencem geralmente ao grupo banto; mais tarde vieramde Moçambique. Sua organização robusta, sua resistência ao trabalho indicaram-nos para as rudes labutas que oindígena não tolerava. Destinados para a lavoura, penetraram na vida doméstica dos senhores pela ama de leitee pela mucama e tornaram-se indispensáveis pela sua índole carinhosa.” J. Capistrano de Abreu [1907], 1988, p.60.67. Entre outros, Stuart Schwartz, 1988, cap. 2, “Uma geração exaurida: agricultura comercial e mão de obraindígena”; e Ciro F. S. Cardoso, “O modo de produção escravista colonial na América”. In: Téo Santiago, 1975.68. Fernando Novais, 1997; Rebeca Gontijo, 2006, cap. 7.69. “O pensamento histórico no Brasil nos últimos 50 anos (1900-1950)”, Sérgio Buarque de Holanda, 1951, p.3 e última página.70. J. Capistrano de Abreu [1907], 1988, p. 139. Sobre a citação dessa passagem em manuais didáticospublicados entre 1930 e 1960, ver Hebe Mattos, 2007.71. Carolina Viana Dantas, 2007; Gilberto Freyre, 1933.72. J. Capistrano de Abreu [1907], 1988, p. 139.73. André João Antonil [1711], 1982, p. 46-50.74. Capistrano de Abreu [1907], 1988, p. 114.75. Ibidem, p. 205.76. Ângela Alonso, 2002.77. J. Capistrano de Abreu [1882], s.d., pp.435-444; José Honório Rodrigues, 1957, cap. 5.78. Idem [1907], 1988, p. 112.79. Hebe Mattos, “Memória e historiografia no oitocentos: a escravidão como história do tempo presente”. In:Cecília Azevedo et al., 2009.80. Rebeca Gontijo, 2006.81. Emile Coornaert, 1936.82. Henri Hauser, 1937.83. Idem, 1938. Tomei contato com o artigo através do capítulo “Henri Hauser e o Brasil”, de Luiz Felipe deAlencastro, 2006, em livro de homenagem ao historiador francês, publicado em Paris. Sobre Hauser, vertambém Marieta de Moraes Ferreira, 2000.84. Emile Coornaert, 1936, p. 45. A resenha focaliza especialmente as revistas do IHGB e do InstitutoHistórico de São Paulo, ainda que faça um destaque para a produção dos institutos de Pernambuco, Ceará eBahia.85. Ibidem, p. 46-51.86. De Oliveira Vianna, Raça e assimilação, populações meridionais do Brasil. Evolução do povo brasileiro.De Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil. De Arthur Ramos, O negro no Brasil, todos publicados naBiblioteca Pedagógica Brasileira, da Companhia Editora Nacional. De Alfredo Ellis Jr., Populações Paulistas.Emile Coornaert, 1936, p. 52.87. Sobre a Sociedade, J. Capistrano de Abreu e a produção historiográfica na Primeira República e nos anos1930, ver Rebecca Gontijo, 2006, caps. 2 e 6.88. Entre outros, Jan F. de Almeida Prado, Primeirospovoadores do Brasil: Formação da nacionalidadebrasileira (1500-1530); M. Alcântara Machado, Vida e morte do bandeirante; Paulo Prado, Paulística. EmileCoornaert, 1936, p. 55-57.89. Affonso d’Escragnolle Taunay. História geral das bandeiras paulistas e História do café no Brasil. EmileCoornaert, 1936, p. 57.90. Emile Coornaert referiu-se, ainda, a algumas obras gerais de história colonial; à produção sobre a históriacontemporânea (século XIX e XX) e à difusão do conhecimento histórico por meio de manuais didáticos erevistas científicas. A resenha considerou o livro de Caio Prado Jr., Evolução política do Brasil, que se tornariaclássico, “muito sumário e levemente tendencioso”.91. Henri Hauser privilegiou a história econômica e política na resenha e pôs em relevo o embrião de umanova historiografia crítica, surgida a partir da criação das universidades no Rio de Janeiro e São Paulo.Destacou também um papel inovador para o Arquivo Nacional, a partir da criação de um Centro de EstudosHistóricos. Tal centro e seu boletim estão a merecer pesquisa mais cuidadosa.92. Affonso de Toledo Bandeira de Mello, 1936.93. Henri Hauser, 1938, p. 310.94. Ibidem, p. 31095. Ibidem, p. 311.96. Ibidem, p. 314.97. O volume quantitativo da entrada de africanos no Brasil foi tema bastante abordado pela historiografia daprimeira metade do século XX. Especialmente Taunay, História do café no Brasil, Roberto Simonsen, Históriaeconômica do Brasil e Pandiá Calógeras Formação histórica do Brasil se aventuraram em conjecturasquantitativas a respeito. A consolidação desses esforços e o melhor trabalho a respeito é A escravidão africanano Brasil, 1949, de Maurício Goulart.98. Henri Hauser, 1938, p. 315.99. Ângela de Castro Gomes, 2001.100. Henri Hauser, 1938, p. 317-318. O sentido precursor e inovador da abordagem de Hauser sobre esse pontofoi especialmente destacado por Luiz Felipe Alencastro em capítulo sobre Hauser e o Brasil, 2006.101. Sérgio Buarque de Holanda, 1951.102. Márcia de Almeida Gonçalves, 2003.103. “Mesmo numa relação bastante incompleta, como a presente, não seria lícito esquecerem-se certostrabalhos dedicados à história regional, como os de Aurélio Porto e Borges Fortes sobre a colonização doextremo-sul, do Sr. Artur César Ferreira Reis sobre o extremo-norte, do Sr. Alberto Lamego sobre a região deCampos dos Goitacazes, do Sr. Tavares de Lira sobre o Rio Grande do Norte, do Sr. Osvaldo Cabral sobreSanta Catarina, do Sr. Aluízio de Almeida sobre o sul de São Paulo, do Sr. Noronha Santos, Luiz Edmundo,Vivaldo Coaracy e Gastão Cruls sobre o Rio de Janeiro, de Estevão de Mendonça e do Sr. Virgílio CorreiaFilho sobre Mato Grosso, do Sr. Romário Martins sobre o Paraná, do cônego Raimundo Trindade sobre aarquidiocese de Mariana, de Rego Monteiro sobre a Colônia do Sacramento, dos Srs. José Honório Rodrigues eJosé Antônio Gonçalves de Melo Neto sobre o domínio holandês no Nordeste. Da obra do Sr. Gonçalves deMelo, diretamente influenciada por ideias e escritos do Sr. Gilberto Freyre, escreve o sociólogo pernambucanoque é ‘a mais completa, mais minuciosa e mais compreensiva que hoje existe em qualquer língua’ sobre otempo dos flamengos.” Sérgio Buarque de Holanda, 1951.104. Entre as mais importantes, arrola A cultura brasileira (1943), de Fernando de Azevedo, “obra extensa,onde o autor, catedrático de sociologia, familiarizado com métodos de pesquisa social, especialmente os quedependem das teorias durkheimianas, aplica-os em alguns casos ao exame de nossa evolução social, cultural epolítica”, e Formação da sociedade brasileira (1944), de Nelson Werneck Sodré, que, “através de inquirição dopassado, [ambiciona] servir ao presente e fornecer instrumentos aplicáveis aos caminhos futuros”.105. Sérgio Buarque de Holanda (org.), 1960.106. Cf. nota 99.107. Sérgio Buarque de Holanda (org.), 1960. Cf., no vol. I., Florestan Fernandes, “Antecedentes indígenas:organização social das tribos tupis”; no vol. II, Alice Canabrava, “A grande propriedade rural”; MaurícioGoulart, “O problema da mão de obra: o escravo africano”; Teresa Schorer Petrone, “As áreas de criação degado”; Antônio Cândido de Melo e Souza, “Letras e ideias no Brasil colonial”.108. Edson Carneiro, 1947.109. Palmares foi tratado na coleção basicamente como um problema da política e administração portuguesasdo período de expansão. Pedro Otávio Carneiro da Cunha. “Política e administração de 1640-1763”. In: SérgioBuarque de Holanda (org.), 1960, vol. II, p. 24-27.110. Sobre o tema, Fábio Franzini, 2006, introdução; Antônio Cândido. “O significado de Raízes do Brasil”.In: Sérgio Buarque de Holanda, 1993.111. Entre outros, Sérgio Buarque de Holanda [1936], 1993, 1945, 1959.112. Celso Furtado, 1959; Roberto Simonsen, 1938; Caio Prado Jr. [1942], 2000.113. Sobre a escola sociológica paulista, com destaque para os trabalhos de Florestan Fernandes, 1959, 1965;Octavio Ianni, 1960, 1962; Fernando Henrique Cardoso, 1960, 1962; Emília Viotti da Costa, 1966; e PaulaBeiguelman, 1967. Ver capítulo de Richard Graham: “A escravatura brasileira reexaminada”. In: RichardGraham, 1979, p. 13-40.114. Emília Viotti da Costa, 1966, 1979. Ver também Carlos Guilherme Motta, 1972.115. Entre outros, Fernando Henrique Cardoso & Enzo Faletto, 1970; Francisco de Oliveira, 1972.116. Nelson Werneck Sodré. “Modos de produção no Brasil”. In: José Roberto do Amaral Lapa, 1980; AlbertoPassos Guimarães, 1964.117. Eric Williams, 1944; Wallerstein, 1974.118. Caio Prado Jr., 1966; Florestan Fernandes, 1975.119. Celso Furtado, 1959, Fernando A. Novais, 1977, 1979.120. “As concepções acerca do ‘sistema econômico mundial’ e do ‘antigo sistema colonial’; a preocupaçãoobsessiva com a ‘extração do excedente’”. In: José Roberto Amaral Lapa (org.), 1980.121. Ciro Cardoso, 1971.122. Ciro Cardoso. “O modo de produção escravista colonial na América”. In: Téo Santiago (org.), 1975, e“As concepções acerca do ‘sistema econômico mundial’ e do ‘antigo sistema colonial’; a preocupaçãoobsessiva com a ‘extração do excedente’”. In: José Roberto Amaral Lapa (org.), 1980, e Ciro Cardoso, 1988.123. Jacob Gorender, 1978.124. Sob este ponto de vista foram fundamentais a linha de pesquisa em história agrária da UniversidadeFederal Fluminense (UFF), sob liderança de Maria Yedda Linhares, os trabalhos desenvolvidos por Katia deQueirós Mattoso em Salvador e a pesquisa em história econômica e demográfica desenvolvida na Universidadede São Paulo.125. Maria Helena Machado, 1988. Para uma visão geral dos aspectos aqui sugeridos, Stuart Schwartz, 1996,2001.126. Entre outros, Stuart Schwartz, J.R.W. Russell-Wood, Richard Graham, Robert Slenes.127. Stuart Schwartz, 2008.128. Ibidem; Herbert Klein & João José Reis, 2008.129. Entre outros, Stuart B Schwartz, 1992, cap. 1; João José Reis, 1999; Stuart B. Schwartz, 2001, cap. 1;João José Reis & Herbert Klein, 2008; Stuart Schwartz, 2008.130. Sobre a produção historiográfica sobre a escravidão no período, O. G. Cunha, T.C.N. Araújo e L. C.Barcelos, 1991.131. Hebe Mattos. “A escravidão fora das grande áreas exportadoras”. In: Ciro Cardoso et al., 1988, pp. 15-72.Ver também João José Reis & Herbert Klein, 2008; e Hebe Mattos, 2008.132. Stuart Schwartz, 1982; idem, 1988, cap. 16.133. Ciro Cardoso et al., 1988, p. 15-72; João Fragoso, 1992, Manolo Florentino 1995, João Fragoso e ManoloFlorentino, 2001.134. Luiz Felipe de Alencastro, 2000. Penso também nos dois livros de Pedro Puntoni, 1999, 2002.135. Por exemplo, Mello e Souza em trecho em que fundamenta sua crítica à utilização da expressão antigoregime para a sociedade colonial: “Mesmo que, acatando críticas, se limite o alcance do conceito de antigosistema colonial ao século XVIII ou, quando muito, ao período posterior à Restauração de 1640...” Laura deMello e Souza, 2007, p. 63.136. João Luís Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa(org.), 2001; João Luís Fragoso,Manolo Florentino et al. (org.), 2006; João Luís Fragoso; Antônio Carlos Jucá et al. (org.), 2008.137. Sobre a história demográfica e da família na década de 1980 e início dos anos 1990, Sheila de CastroFaria, 1997; e José Flávio Motta, 1999.138. Robert W. Slenes, 1999; João José Reis, 1999.139. Silvia H. Lara, 1995.140. Entre outros, João José Reis, 1986; e Sílvia Lara, 1988. Sobre o tema, João José Reis, 1999.141. Hebe Mattos, 1995, Manolo Florentino; e José Roberto Góes, 1997; Robert W. Slenes & Sheila de CastroFaria, 1998; Robert Slenes, 1999.142. Ronaldo Vainfas, 1989, p. 107-112; Silvia Brugger, 2007.143. Entre outros, Manuela Carneiro da Cunha, 1992; John Monteiro, 1994; Regina Celestino de Almeida,2003; Flávio dos Santos Gomes, 2005. Sobre o tema, Stuart Schwartz, 2008.144. Entre outros, Mariza Soares, 2001, 2007; Marina de Mello & Souza, 2002; Flávio Gomes & CarlosEugênio Soares & Juliana Farias, 2003; Manolo Florentino (org.), 2005; Silvia H. Lara, 2007. Ver também JoãoReis e Herbert Klein, 2008.145. Silvia Hunold Lara, 1988.146. Idem, 2000; Silvia H. Lara & Joseli Mendonça (orgs.), 2006. Ver também o projeto The Law in Slaveryand Freedom, University of Michigan (http://sitemaker.umich.edu/law.slavery.freedom/home ).147. António Manuel Hespanha, 1993, 1994.148. Silvia H. Lara, 2007; Hebe Mattos, 2008.149. Entre outros, Beatriz Perrone-Moisés. “Índios livres e índios escravos: os princípios da legislaçãoindigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII)”. In: Manuela Carneiro da Cunha, 1992; e Patrícia deMello Sampaio, 2001. Mais sobre a questão, Stuart Schwartz, 2008.150. Silvia H. Lara, 2005; Rafael Marquese, 2004; Hebe Mattos, 2000.151. A.J.R. Russel-Wood, 2005; Silvia H. Lara, 2005, 2007; Hebe Mattos, 2006, 2008; Rafael de BivarMarquese, 2004.152. Hebe Mattos. “A escravidão moderna nos quadros do Império Português: o Antigo Regime emperspectiva atlântica”. In: João Fragoso, Maria de Fátima Gouvêa e Maria Fernanda Bicalho, 2001, p. 141-162.153. Entre outros, Sheila de Castro Faria, 2004; Manolo Florentino (org.), 2005; Márcio Souza, 2006. Vertambém Herbert Klein & João José Reis, 2008.154. Hebe Mattos, 1995, 2004; Sheila de Castro Faria, 1998; Silvia H. Lara, 2007; Ivana Lima, 2001; LarissaVianna, 2008.155. Joseph Miller, 1988; Paul Lovejoy, 2002.156. Ira Berlin, 2002. Traduzido com o título Gerações do cativeiro, Rio de Janeiro, Record, 2007.157. Joseph Miller. “The ‘Margins’ of World History. The Portuguese South Atlantic in Global Perspective”.Conferência apresentada no seminário Le Brésil et l’Atlantique Sud XVIe – XXIe siècle: une histoire global àl’époque moderne et contemporaine. Centre d’Études du Brésil et de l’ Atlantique Sud. Sorbonne – Paris IV, 11de abril de 2008.PARTE II Povoamento: os cenários da Conquista da América LusaCAPÍTULO 2 A Europa da expansão medieval — Séculos XIII a XVJean-Fredéric Schaub*Tradução de Clóvis MarquesA história da África já está plenamente incorporada ao ensino da história no Brasil. Essamudança deve representar uma poderosa alavanca para deixar para trás essa forma especial deetnocentrismo representada pelo eurocentrismo. Mas devemos distinguir dois níveis deeurocentrismo quando refletimos sobre os cinco séculos de experiências da América lusófona.Um deles diz respeito à tentação de observar esse espaço a partir do velho continente. O outrotem a ver com a reprodução da dominação das populações de origem europeia sobre as demaispopulações, nativas ou deportadas da África, através de uma narração pautada pelos valoresdos dominantes. Estamos diante, portanto, de um trabalho complexo, que permite umconfronto e uma crítica recíproca das narrativas dessas experiências produzidas pelassociedades ameríndias; as sociedades africanas de origem e as sociedades africanasrecompostas no contexto do sistema escravagista; as sociedades crioulas de dominantelusófona e as sociedades europeias. Não se trata, assim, de substituir um vínculo com aEuropa, considerado abusivo, por um vínculo com a África, que por sua vez estava até entãoausente. Pois semelhante substituição serviria apenas para trocar um déficit por outro. Por que,então, abrir um volume sobre a história do Brasil com um capítulo sobre alguns aspectos daEuropa medieval entre os séculos XIII e XV? O motivo é de fácil compreensão. Admite-sesem dificuldade que um novo rumo, não importando ser ele chamado modernidade ou poroutro nome, começa para a história europeia após os Grandes Descobrimentos, como uma desuas principais consequências. A partir do fim do século XV, a América produziu uma Europanova. Os europeus que registraram os processos sociais, econômicos, culturais e políticosgerados por seu investimento nas Américas viram-se com isso profundamente transformados.Neste sentido, podemos dizer que a dialética da construção de um domínio atlântico pôs fim aoque se costuma chamar, para retomar a expressão de Jacques Le Goff, de “civilização doOcidente medieval”. Mas os protagonistas dessa irrupção nos espaços americanos, osColombo, os Cabral, os Cortés, os Pizarro, ainda são medievais. As representações do mundo,da sociedade, dos homens e de Deus de que são portadores ainda são as do Ocidente medieval.Na organização deste volume, portanto, um capítulo é dedicado à Europa dos séculos XIII aXV, e um outro ao Portugal do fim do século XV. Esta escolha é decisiva por recusar o modeloclássico da história colonial que se desdobra no contexto do face a face entre a metrópole e suaconquista, isolando ambas de outros contextos e outras inscrições regionais. Que o Portugalmedieval tenha perfeitamente seu lugar num volume sobre a história do Brasil é algo que falapor si mesmo. O primeiro contato dos marinheiros genoveses e portugueses com o arquipélagodas Canárias (1312) ocorre dezesseis anos antes do início da Guerra dos Cem Anos. Cabelembrar que a tomada de Ceuta (1415), que pode ser considerada o primeiro passo da expansãocolonial portuguesa, é exatamente contemporânea da batalha de Azincourt. A navegaçãooceânica no Atlântico norte conduz os navios portugueses à ilha da Madeira em 1419, valedizer, treze anos antes da execução de Joana d’Arc. O cabo Bojador é ultrapassado por GilEanes em 1434, quinze anos antes do início da Guerra das Duas Rosas na Inglaterra. Ajustaposição dessas cronologias bastaria por si mesma para assentar a compreensão daexpansão atlântica na história da Europa medieval.Pois a pré-história de Pedro Álvares Cabral e das primeiras gerações de conquistadoresportugueses na América não se limita ao breve período da expansão do século XV nemmesmo, pelo contrário, exclusivamente à experiência portuguesa. O reino de Portugal, apesarde sua localização na extremidade ocidental da península Ibérica e do continente europeu, nadatem de um território isolado ou apartado das grandes evoluções da Europa da baixa IdadeMédia. A primeira dinastia dos reis de Portugal é borgonhesa (1139-1383); a conquista cristãdo território contra os principados islâmicos foi empreendida por senhores provenientes detoda a Europa; Portugal comercia intensamente com a Inglaterra e Flandres; sua aristocracia, emesmo sua nobreza intermediária, estão estreitamente ligadas às de Castela e Aragão atravésde alianças matrimoniais; seu clero é tão afetado quanto os demais pelas tribulações da Igrejaromana. Em suma, isolar Portugal de sua inscrição regional no Ocidente medieval seria tãodestituído de sentido quanto pretender excluí-lo de uma história longa do Brasil.Dito isto, por que apreender o contexto ampliado da experiência a partir do século XIII?Alguns acontecimentos decisivos fazem desse período uma virada importante, especialmenteno que diz respeito a fenômenos cujo surgimento contribui de maneira útil para oesclarecimento do impulso colonizador. É o século do fim da conquista cristã em Portugal(1253) e da batalha de Las Navas deTolosa (1212), pela qual o centro da península Ibérica, atéo reino de Sevilha, cai em poder das tropas do rei de Castela. É um século que começa com oreinado de Filipe Augusto na França (1180-1223), com a adoção da Magna Carta (1215) naInglaterra, vale dizer, com os episódios que parecem definir por um período de séculos osestilos políticos das grandes casas reais. É também o século da adoção dos cânones do quartoconcílio de Latrão (1215), que codificam as grandes séries de perseguições, a começar pelacruzada contra os albigenses (1206-1244) e o ciclo de expulsão dos judeus da Inglaterra(1290), da França (1306) e, bem mais tarde, de Castela e Aragão (1492). Outro acontecimentode profunda repercussão é o saque da cidade de Constantinopla (1204), a segunda Roma, pelosempreendedores genoveses e venezianos do que ficou convencionado chamar de IV Cruzada.Numa palavra, o momento do século XIII é aquele em que se dá a consolidação das estruturasdos países europeus graças à dinâmica da expansão e às práticas de perseguição coletiva. Sãoambas componentes indispensáveis para entender a experiência colonial da África, da Ásia e,afinal, da América. Em torno desses dois conceitos de expansão e perseguição é que estecapítulo apresenta ao leitor a contribuição dos processos em andamento na Europa dos trêsúltimos séculos da Idade Média para a reflexão sobre a formação da América portuguesa.*Se tivéssemos de levar em conta apenas uma característica do Ocidente medieval, seria semdúvida alguma o lugar central nele ocupado pela Igreja. A comunhão cristã é a única dimensãoda vida social que abarca o conjunto das pessoas, famílias, populações, territórios einstituições. A paróquia é a unidade em que se alicerça a vida coletiva, em regime de senhoriarural e no espaço urbano. Do nascimento à morte, cada um dos momentos da vida dosindivíduos é enquadrado rigorosamente pelas regras da Igreja, conferindo-lhes forma e sentido.Na época do renascimento das ciências jurídicas, após a fundação das universidades deBolonha (1088), Oxford (1167), Salamanca (1218) e Paris (1231), o comentário dascompilações de direito canônico é tão importante quanto o do Corpus iuris civilis. Asinstituições eclesiásticas detêm a posse de terras às vezes imensas, gerindo seus rendimentos eexercendo toda a autoridade senhorial sobre as populações que nelas residem e trabalham. Afunção principesca e real é estendida, das mais diversas maneiras, como um vicariato doCristo, do qual é fiadora a aliança do príncipe com a Igreja. A persistência teórica do SantoImpério Romano, a sagração dos reis da França, a taumaturgia que eles têm em comum com osreis da Inglaterra e a coroação dos reis da Suécia pelo arcebispo de Uppsala (1210) sãomanifestações de uma concepção sacramental da função real no contexto estrito imposto pelaIgreja. O cristianismo grego ortodoxo também se revela indissociável da autoridade políticasuprema, seja representada pelos imperadores bizantinos ou, bem no fim da Idade Média, pelossenhores da Rússia kieviana e posteriormente da Moscóvia.A própria presença tolerada de comunidades não cristãs é integrada ao contexto impostopela Igreja. Foi o caso das populações muçulmanas dos territórios conquistados na Sicília, apósa instalação dos normandos no fim do século XI (1061-1091) e sob o imperador Frederico II,no meado do século XIII (1220-1250), e na península Ibérica à medida que se ampliam osterritórios dos reis de Portugal, de Castela-Leão e de Aragão, nos séculos XII e XIII. Os fiéisda lei mosaica dão testemunho da história anterior à nova aliança, mas sua vida religiosatranscorre sob o olhar vigilante da Igreja romana, que não hesita em distinguir na prática e nostextos judaicos o que é lícito ou tolerável e o que deve ser erradicado, como, por exemplo, ocomentário talmúdico. A sociedade certamente não é monolítica, e várias fontes de comando eautoridade entram em concorrência, confrontam-se e negociam suas partes respectivas, comose pode constatar pelas disputas e lutas de influência que desde a Idade Média central opõem opapado a certos imperadores, reis e príncipes. Entretanto, seria absolutamente ilusóriopretender distinguir as autoridades política, moral, espiritual e intelectual isolando umainstância que os tempos modernos viriam a definir como a religião ou a esfera religiosa.Afetada por mil falhas e fraturas, permeada de tensões e contestações, a Igreja surge como ainstituição total da vida social. Os homens provenientes da Europa que conquistaram aAmérica não faziam as distinções que só viriam a adquirir sentido no processo tardio desecularização da Europa ocidental.Em função da escala adotada ou da religião observada prioritariamente, os três últimosséculos da Idade Média podem ser abordados como um período de expansão, mas também deretração territorial do Ocidente cristão. A sudeste, ou seja, na bacia oriental do Mediterrâneo,as conquistas genovesas, venezianas e aragonesas em detrimento do Império Bizantinoprecedem em algumas décadas o início da presença otomana nos Bálcãs. Os ducados gregos deAtenas e Neopátria são vinculados à coroa de Aragão durante um longo processo (1311-1377),enquanto os sérvios invadem os territórios bizantinos do Norte e os otomanos se estabelecemnos Bálcãs (1347). Os sérvios são derrotados uma primeira vez em Kosovo em 1389, e o heróida Albânia, Skander Beg, não consegue conter o avanço turco (1460-1468). No Norte, asexpansões concorrentes dos cavaleiros teutônicos e dos senhores poloneses no vasto domíniolituano têm prosseguimento no fim do século XIII (1283), enquanto o khanato tártaro de Kazanassume o controle da Moscóvia cristã (1223-1480) e o reino da Hungria se vê na linha defrente das cavalgadas dos mongóis ou tártaros que chegam à Silésia (1241), à Croácia, àMorávia e às portas de Viena. O período que vai do século XIII ao século XV, com efeito,corresponde na Rússia ou Rus’ à chamada fase do “jugo tártaro”. O fim desse período,exatamente contemporâneo do fim da “Reconquista” ibérica, caracteriza-se pelo triunfo doducado da Moscóvia sobre as cidades concorrentes, a começar por Novgorod, pelo recuo parao sul do território controlado pelos herdeiros mongóis islamizados da Horda de Ouro e poruma forte expansão até os Urais, ao norte de Kazan.Do ponto de vista das relações entre islã e cristandade, esse fim da Idade Média écontrastado. Por um lado, as unidades políticas muçulmanas desapareceram progressivamenteda margem norte da bacia ocidental do Mediterrâneo, no norte da península Ibérica, e depoisna Sicília e finalmente no sul da península Ibérica. Mas a leste, sob a investida dos mongóis edos mamelucos, o reino da Armênia vai encolhendo até desaparecer em 1375, e essatransformação representa um novo recuo para a cristandade. Assim como o fracasso dascruzadas empreendidas pelo rei da França Luís IX (1248-54 e 1270), que confirmam o fim dosreinos latinos do Oriente. Finalmente, a progressiva redução do Império Bizantinoexclusivamente à cidade de Constantinopla, ainda mais frágil que a situação do reino násridade Granada no fim do século XV, contrasta com os êxitos ocidentais dos cristãos.É também no século XIII que se assiste à multiplicação dos projetos de contorno do islãmediterrâneo e do Oriente Próximo. É o caso, para começar, da intensa difusão do mito doreino do padre João, a partir do meado do século XII. Trata-se de uma construção elaborada apartir de informações fragmentárias, em poder da Igreja romana, a respeito dos avançosmongóis na Ásia Central, que ameaçam o domínio islâmico. Progressivamente, ao longo doséculo XIV, o reino mítico, que permitia estabelecer uma aliança oblíqua contra o mundomuçulmano, deixa de se localizar na Ásia Central ou na Índia, passando a se identificar com ocristianismo da Etiópia. Numa esfera que nada tem de imaginária, estabelecem-se contatoscom o Império dos mongóis, antes de sua progressiva islamização. O papa Inocêncio IV (1243-54) toma a iniciativade contatos diplomáticos com os mongóis. A ordem dos franciscanos,cuja fundação coincide com a virada do século XIII (1208), envolve-se ativamente nessecaminho, que acaba em fracasso. Mas o fato é que a ideia do contorno do islã no OrientePróximo configura-se como uma constante estratégica do Ocidente cristão, dela sendo herdeiradireta a rota ocidental explorada por Cristóvão Colombo.A maneira como as sociedades da Europa medieval entendem suas relações com os mundosexteriores é impregnada de ambivalência. De fato, a ideologia da cruzada, apresentando osinfiéis como um combate inexpiável e sem compromisso, vem a ser desmentida nas práticas denegociações locais ou regionais que os cruzados devem consentir no contato real com aspopulações muçulmanas ou cristãs do Oriente. As embaixadas, as trocas de prisioneiros e oreconhecimento recíproco do valor cavaleiresco abrandam as linhas de frente, sem chegar amodificá-las. Mas isto não é tudo. A tentação da aliança contra a natureza manifesta-se emvários teatros nos últimos séculos da Idade Média. Foi o caso na Espanha dos séculos XII eXIII, como muito bem ilustra o Cantar de Mio Cid (1207). Nas relações instáveis que seestabeleceram no Oriente latino entre aristocracia franca, administração bizantina e poderesmuçulmanos, os cristãos muitas vezes ficaram divididos, buscando às vezes apoio naspotências islâmicas regionais. No meado do século XIV, é a pedido do imperador deConstantinopla, em conflito com os sérvios, que os exércitos turcos adentram pela primeira veznos Bálcãs (1346). Enquanto os paxás organizam a administração da região, a cidade deRagusa (atualmente Dubrovnik) é tributária desde 1385, mas se beneficia de privilégiosespeciais, em virtude de seus vínculos com o Império da República de Veneza. Assim, apesarda força dos discursos de estigmatização dos infiéis e outros bárbaros, as situações decompromisso com o inimigo designado, quando não de verdadeira cumplicidade, são umfenômeno que se repete.Esses jogos complexos multiplicaram-se no contexto de uma fragmentação das duascristandades, grega e romana. No primeiro caso, a derrocada política do império bizantinofavorece a autonomização dos patriarcados ortodoxos, como o de Pecs, na Sérvia (1281), emais adiante, sobretudo, o da Rússia, que se torna autocéfalo em 1448. No caso da cristandaderomana, a situação é diferente. O universalismo cruzado da Paz de Deus e das três primeirascruzadas no século XII (1095-1101; 1145-1148; 1188-1192) tinha acompanhado a restauraçãoda autoridade pontifical, parecendo anunciar um período de unificação da Igreja. Mas nos trêsúltimos séculos da Idade Média a dinâmica parece inverter-se. O conflito entre Frederico II,titular da coroa do Santo Império Romano (1220-1250), e o papado leva ao recuo da instituiçãoimperial, que só Carlos V (1519-1552), fortalecido pelo conjunto de suas heranças, tevecondições de restaurar no século XVI. Enquanto isso, quatro reinos afirmam sua vocaçãoimperial, ou seja, uma capacidade de aglomeração territorial e conquista além-mar. São eles aFrança, cujo rei pretende “ser imperador em seu reino”; a Inglaterra, que começa a conquistar aparte oriental da Irlanda (1167) e tenta várias vezes assumir o controle do reino da Escócia(1293; 1329); o reino de Castela-Leão, mobilizado pela conquista territorial da penínsulaIbérica e promovendo uma espécie de cruzada de proximidade; o reino de Aragão, que estendesuas conquistas pelas duas bacias do Mediterrâneo, a partir das ilhas Baleares (1229-1235) atéa Sicília (1409) e Nápoles (1442) e a Grécia. Mas devemos acrescentar ainda o pequeno reinode Portugal, as repúblicas imperiais de Veneza e Gênova. Essas potências territoriaisenfrentaram-se nesse período, reduzindo a zero o espírito da Paz de Deus e seu universalismo.Na época das expansões europeias, as rivalidades entre reinos cristãos não se amorteceram nocontato com mundos desconhecidos. Pelo contrário, surgiram novas causas de rivalidade e ospovos subjugados pelos conquistadores europeus muitas vezes foram levados a combater aolado de seus novos senhores contra outros europeus.*Os homens da Idade Média às vezes faziam viagens longas. As cortes reais são itinerantes,embora o território de seus deslocamentos tenha um raio limitado. Em compensação, o sistemade alianças matrimoniais leva as famílias da alta aristocracia e as dinastias principescas amandar suas filhas, e às vezes os filhos menores, casarem-se longe de seu país de residência.Herdeiras das cruzadas do século XII, as ordens militares estendem sua ação das altas planíciesde Castela até a ilha de Chipre, de Jerusalém aos confins do Báltico cristão. Na Terra Santa,contribuem para tornar segura a prática da peregrinação, que também é uma matrizfundamental da relação dos homens da Idade Média com o deslocamento. Roma, Santiago deCompostela e Jerusalém são visitadas por peregrinos que percorreram centenas e às vezesmuito mais de mil quilômetros. Os clérigos designados para liderar sés episcopais também sedispõem eventualmente a viajar para muito longe de sua terra natal, e os mestres das primeirasuniversidades igualmente ocupam cátedras em várias regiões distantes umas das outras aolongo de sua carreira profissional. Os comerciantes, naturalmente, também estão entre essesatores sociais que detêm a experiência de viajar até os confins da cristandade e mesmo além.Em suma, nada seria mais equivocado que imaginar uma sociedade medieval do imobilismo, àqual teria sucedido uma sociedade moderna da mobilidade generalizada.Cabe aqui conferir um lugar importante às fontes literárias, no mínimo porque elasconvidam o historiador a não exagerar a radicalidade da ruptura colombiana. A impulsão dadescoberta abebera-se em representações cavaleirescas e espirituais herdadas da poesia épica edo romance, através dos quais os valores guerreiros da aristocracia europeia foram encenados,depurados e difundidos. O ciclo arturiano, a Canção de Roland (por volta de 1090), Tirant loBlanch (1490), as diferentes variações da história de Alexandre, entre outros, nutrem aimaginação de jovens da nobreza europeia. Em graus diversos, essa literatura de fantasia ouderivada de acontecimentos históricos mistura o teste do valor cavaleiresco e a busca ou aconquista, vale dizer, a imersão em mundos desconhecidos. Por essa ótica, tais obras podemser consideradas as matrizes formais das literaturas de viagem. Estas associam a referência àsgeografias de Estrabão, Plínio e Ptolomeu às enciclopédias medievais, como as Etimologias deIsidoro de Sevilha, a experiência ocular da viagem e as representações da poesia aventurescaque inflamam o apetite pelas grandes proezas. Cristóvão Colombo partiu tendo em mente, etalvez mesmo a bordo de suas caravelas, O livro das maravilhas de Marco Polo (1298-1307), aImago Mundi de Pierre d’Ailly (1410) e a Viagem ao redor da Terra de Jean de Mandeville(meado do século XIV), e esses livros não podem ser analisados sem levar em conta seuenraizamento numa literatura imaginária muito mais ampla e antiga.O apetite de deslocamento corresponde a dados culturais e espirituais fundamentais. Por umlado, como fica manifesto na espiritualidade da peregrinação, a viagem empreendida pelo fiel éuma reiteração da concepção da vida terrestre como caminho que conduz à outra vida. Poroutro, as expedições à Terra Santa revelam um caráter absolutamente singular da experiênciaeuropeia cristã. Privada de uma língua sacra, o que não são o latim da Igreja romana nem ogrego da Igreja ortodoxa, a cristandade também é despojada de seus lugares santos. Santiagode Compostela e Roma são substitutos do lugar autêntico que se identifica, emocional eespiritualmente, com o Cristo: Jerusalém. À exceção dos dois séculos durante os quais oscruzados exerceram sua autoridade política sobre a cidade que abriga o sepulcro de Cristo, acristandade é uma comunhão cujo coração histórico e sacramental bate do lado de fora. Apresença de comunidadese indígenas lidavam, no Quinhentos e no Seiscentos, com osseus problemas. Hoje em dia, as pesquisas, por exemplo, sobre o sul da Europa, os Açores ouas sociedades da África Ocidental dos séculos XVI e XVII já permitem, ao menos, tentar intuircom quais artefatos lógicos os açorianos, os minhotos e os “mina” lidavam ao chegarem asconquistas lusas americanas. Da mesma forma, os estudos sobre a história indígena já nosfornecem indícios de como as diferentes populações tupis lidavam com seus problemas.15Um bom exemplo de construção de hipóteses para a análise da sociedade da América lusaSeiscentista, com base nos valores e recursos do próprio Antigo Regime católico, é o conceitode rede governativa iniciado pela saudosa Maria de Fátima Gouvêa. Através desse conceito, aautora procurou demonstrar que a ação e a gestão na alta política do Império luso podiam sebasear em redes constituídas por altos oficiais régios situados em diferentes pontos do Império,mas unidos por laços de amizade, clientela e/ou de parentesco.16Os textos, apresentados nos três volumes do Brasil Colonial, pretendem dar ao leitor umaideia do estado da arte de diferentes temas do que estou denominando América lusa profunda.Nessa coleção, vamos encontrar textos de síntese, portanto, baseados em uma exaustiva erefinada bibliografia de assuntos clássicos, mas também temos capítulos que experimentammétodos e fontes novas para velhos temas, ou, ainda, escritos sobre objetos ainda poucovisitados. Outra característica da coleção é a pluralidade de visões teóricas. Os autores dacoleção não comungam as mesmas ideias sobre a América portuguesa, alguns partem doconceito de Antigo Sistema Colonial e/ou de capitalismo comercial. Outros preferem testar aideia de Antigo Regime nos trópicos. Outros ainda partem de pressupostos distintos dessasabordagens. O fato é que, em tal coleção, o leitor poderá ver saudáveis tensões historiográficas.Ou melhor, quem ler os textos a seguir verá que a historiografia sobre a América lusa estásendo construída em meio à ideia de Academia, entendida como confronto de ideias baseadasem pesquisas profissionais. Devo dizer que, para mim e a querida Maria de Fátima Gouvêa, foiuma honra poder reunir historiadores com interpretações distintas. A bem da verdade, taliniciativa madura teve em Maria de Fátima a principal mentora. Afinal, la guerre est finie,como diz um filme memorável de Alain Resnais de 1966.Dito isso, as ideias que foram apresentadas nas primeiras páginas deste prefácio assimcomo as seguintes são as nossas opiniões.*A minha geração viveu mudanças dramáticas na historiografia internacional, uma delas foi acrítica à ideia de Estado Absolutista como sinônimo de Antigo Regime, hipótese em vogadesde o século XIX. Denomino essa crítica como dramática, pois ela abriu espaço para umanova leitura da sociedade europeia da época moderna, o Estado Leviatã cedia espaço à agênciados poderes locais e de grupos como a nobreza.17 A mesma crítica também implicou numanova leitura sobre a dinâmica dos Impérios ultramarinos, em especial os ibéricos. Nesse últimocaso, basta lembrar a lição que aprendi no ensino médio sobre Mercantilismo. Esse eraentendido como política econômica do Estado Absolutista e tinha como um dos seus principaisaspectos a exploração das riquezas do Novo Mundo. Em fins da década de 1980, colocou-seem dúvida a ideia de absolutismo, assim como a exploração econômica e a subordinaçãopolítica impiedosa das, até então, chamadas colônias.Em 1989, Antonio Manuel Hespanha publicava Vísperas del Leviathán. Instituiciones ypoder político,18 em que desenvolvia ideias apresentadas em trabalhos anteriores, entre eles ocapítulo “Para uma teoria da história institucional do Antigo Regime”, impresso em 1984.Nesses textos, foi desenvolvida a hipótese seminal, na qual monarquia era entendida como acabeça da república, porém sem se confundir com essa, já que nela existiam outros poderesconcorrentes: da aristocracia às comunas municipais. Era ela a “cabeça pensante”, capaz dearticular as jurisdições das várias partes que compunham o conjunto do corpo social, seja noreino, seja no ultramar. Três anos depois, J. H. Elliott, tendo como referência o caso espanholda época moderna, expunha o conceito de monarquia compósita. Nela a monarquia era algoconstituído por vários reinos, sendo que cada um deles preservava, em grande medida, ascaracterísticas de sua existência institucional prévia, estando no interior da monarquia.19 Osvários reinos eram, desse modo, preservados nos termos de suas formações originais, com seuscorpos de leis, normas e direitos locais. Cada uma dessas unidades mantinha sua capacidade deautogoverno no interior de um complexo monárquico mais amplo. Nesse formato, o rei — omonarca — operava como a cabeça do corpo social, constituído pelos vários reinos, que eramregidos por suas regras, coadunadas com as leis maiores editadas pela Coroa, como era o casodo Vice-Reino de Portugal e a edição das Ordenações Filipinas em 1602, por exemplo.Do outro lado do Atlântico, em 1994, J. Greene, vivendo a mesma atmosfera revisionista,apresentava a noção de autoridade negociada como eixo nas relações metrópoles e colônias,rompendo com isto a tradição da inexorável subordinação política das chamadas colônias e desuas elites locais frente às autoridades metropolitanas europeias.20 Com isso, chegava a históriapolítica a uma perspectiva mais antiga, presente na literatura de história econômica, que, desdefins da década de 1970, ao menos, criticava a teoria da dependência.21Muito já se criticou, no Brasil e no exterior, as teorias de I. Wallerstein, um dos últimoslampejos de tentar explicar o capitalismo através de periferias e semiperiferias em escalamundial, portanto, não há por que aborrecer o leitor e muito menos este que escreve.22 Um anodepois da publicação do livro Sistema mundial capitalista de Wallerstein, saiu no Past andPresent, em 1976, o artigo de R. Brenner sobre a crise do século XIV e a formação docapitalismo. Ao contrário do primeiro autor, o último considerava que a formação docapitalismo, pioneiro na Inglaterra e não em outras partes, como a França, devia ser explicadapela dinâmica das estruturas agrárias e conflitos entre grupos sociais. Apesar de o “DebateBrenner” não ter sido traduzido para o português, acredito que o público dessa coleção oconhece ou deveria conhecê-lo e, desse modo, também não há por que escrever laudas sobreele.23 Para efeito deste prefácio, basta apenas chamar atenção do leitor que as discussões aseguir têm como referencial aquelas hipóteses. Sendo mais preciso: parto de autores, que,mesmo considerando inconcluso o Debate Brenner, dele se valem como marco teórico, e nãodas ideias de Wallerstein, para explicarem as relações entre a Europa e o Novo Mundoamericano nos tempos modernos.Esse é o caso de Eugene e Elizabeth Genovese ao estudarem a escravidão no Sul dosEstados Unidos. De início, eles consideram que a expansão ultramarina europeia deve serentendida sob os auspícios de uma sociedade feudal e dominada, portanto, pela aristocraciafundiária, e não por um capital mercantil.24 Um pouco antes, os autores afirmam que o capitalmercantil contribuiu para o esfacelamento do feudalismo e a formação do mercadointernacional, porém isto não implicava que se tenha criado o capitalismo ou um novo sistemade produção.25 Para eles, a sociedade escravista do Old South e a da segunda servidão do lestedo Elba podiam ter em comum as ligações com o comércio internacional. Porém assemelhanças terminavam nessas ligações, ou seja, tais sociedades não podiam ser vistas comosimples criaturas de um “capitalismo comercial”. Na verdade, o senhor de escravoaproximava-se mais dos empreendedores capitalistas do Norte dos Estados Unidos, do que dosjunkers prussianos.26Do outro lado do Atlântico Norte, na Inglaterra, Patrick O’Brien, também no início dadécada de 1980, escrevia o artigo “European economic development:cristãs na Palestina e de estabelecimentos romanos e bizantinos juntoao Santo Sepulcro em nada muda esta situação. Caberia então ver nessa especificidade dacristandade, nessa disposição que situa o lugar mais sagrado fora das fronteiras, uma condiçãodo desejo de conquista distante? O exemplo do islã, senhor de seus lugares santos, mas apesardisso engajado numa dinâmica de expansão indefinida, parece desmentir a hipótese. E, noentanto, quando tentamos entender o que leva os europeus a dominar as sociedades e territóriosexteriores, devemos ter em mente esse dado decisivo da história espiritual e política doOcidente cristão.A peregrinação e a cruzada também dão testemunho de que a circulação para lugaresdistantes não foi um privilégio dos mais poderosos, ficando os miseráveis presos à gleba. Osmovimentos de conquistas interiores e a instalação de famílias aristocráticas, de umaextremidade a outra do continente, afetam o ambiente dos senhores em busca de novas terras.Políticas voluntaristas de povoamento, como os alemães ocidentais instalando-se na Prússia ena Pomerânia, ou os habitantes do Norte da Espanha no reino de Valência e na Andaluzia,tomados aos principados muçulmanos, deslocam lavradores e camponeses. A movimentaçãode populações não envolve apenas as elites das armas, das letras, do comércio ou da fé. Sãomuitos aqueles que tiveram a experiência do deslocamento, e puderam então descobrir queoutros homens falavam e viviam de outras maneiras, fossem já cristãos ou ainda pagãos, senãoinfiéis. A existência de autênticas frentes pioneiras na Espanha, na Europa central e oriental, naIrlanda, nos reinos latinos do Oriente, levou os historiadores a refletir sobre a natureza colonialdesses empreendimentos, apesar de anteriores em três séculos às viagens de CristóvãoColombo.*A partir do século XIII, as sociedades da Europa ocidental assistem a um sensívelagravamento do dispositivo de perseguição e exclusão que progressivamente se definiu aolongo dos séculos XI e XII. Os alvos do impulso de perseguição são os céticos, os judeus, osleprosos e mais tardiamente as feiticeiras, para levar em consideração apenas os grupos maisfacilmente identificáveis. Num ensaio provocador, o historiador Robert I. Moore mostra que aperseguição tornou-se então a coluna vertebral da instituição política da sociedade. Osdispositivos fixados por iniciativa do papa Inocêncio III (1198-1216) no IV Concílio de Latrão,e depois do papa Gregório IX (1227-1241), organizam as modalidades dessa repressão. Oinício do século XIII assiste também à eclosão da ordem dominicana (1215), sob a direçãoespiritual de Domingo de Guzmán. Essa ordem religiosa encontra seu laboratório na lutacontra a heresia cátara, no condado de Toulouse. O procedimento inquisitorial, que permiteidentificar e perseguir as comunidades étnicas, passaria por um formidável desenvolvimentonas monarquias ibéricas na época moderna.A contribuição específica de Moore consiste em ligar essas formas de enquadramento dasociedade ao que os historiadores mais tradicionais identificavam como ascensão ecentralização do Estado. Ele observa que essas formas de perseguição constituem na verdadeataques contra a autonomia do poder comunitário. Elas se apresentam ao mesmo tempo comofontes de legitimidade política, invocando a ortodoxia religiosa e moral, e ferramentas depressão sobre as populações e seu contexto local. Ele chega a uma conclusão que mereceponderação: “Naturalmente, não é por acaso que os reis e papas citados com mais frequência (apropósito da perseguição) são os que mais firmemente se identificaram com uma inovaçãovigorosa e imaginosa nas artes do governo.”** Existe um vínculo forte entre a inovaçãopolítica e o estabelecimento de procedimentos repressivos movidos pelo desejo de erradicaçãoda alteridade espiritual. Uma história assim afasta-se da narrativa do surgimento da soberaniaestatal como estágio avançado da organização social. Ela interpreta as manifestações de podere a afirmação da autoridade como resultado de uma luta empreendida e difundida por umconjunto de instituições de natureza diferente no seio da sociedade. A perseguição comoregistro da politização ocidental já não é então pensada como erro lamentável de ummovimento que, por outro lado, inventa a monarquia soberana e o Estado nacional. Esse viéspermite observar a organização da sociedade como um movimento de luta e repressão, e nãocomo a difusão cada vez mais generalizada de ideologias que requerem adesão, como o gostoda ordem ou a divindade da pessoa real. Esta lição pode revelar-se útil a partir do momento emque o olhar se volta para a formação das sociedades crioulas e mestiças da América, a partir doséculo XVI.O fim da Idade Média surge como um período de intolerância crescente entre diferentescomunidades. A constante migração de colonos de língua germânica em direção leste, para asregiões eslavas e magiares, constitui um considerável foco de tensões. Assim, as corporaçõesde ofício excluem as pessoas que não são de origem alemã em certas cidades do leste. A guildade padeiros alemães de Riga proíbe em 1392 os intercasamentos com a população báltica. Emsentido inverso, a nobreza cracoviana estimula autênticos pogroms antialemães no contexto deuma política de polonização. Pawel Wlodkowic, reitor da universidade de Cracóvia e titular deuma cátedra de teologia, denuncia durante o Concílio de Constança (1414-1418) a prática daconversão forçada imposta pelos cavaleiros da ordem teutônica na Prússia, defendendo osdireitos de populações ainda não convertidas.Os irlandeses são excluídos das corporações urbanas e guildas em várias cidades anglo-normandas da Irlanda. Com a publicação dos “estatutos de Kilkenny” (1366), as autoridades seopõem à assimilação dos colonos ingleses à sociedade ambiente, mediante a proibição de falarem gaélico ou cantar as canções locais. Um movimento generalizado de “guetização” pareceassim impor-se no fim da Idade Média. Nos séculos XIV e XV, os reis espanhóis reduzem aautonomia judiciária dos mudéjares, seus súditos que continuaram muçulmanos. Depois dagrande onda de pogroms antijudaicos de 1391-1392, as conversões em massa de judeusibéricos no século XV geraram uma autêntica paixão pela genealogia. O desejo de fixar umafiliação apoderou-se, nesse caso, dos judeus fiéis à fé de seus antepassados, dos convertidosque tentavam escapar de toda forma de estigmatização e dos velhos cristãos preocupados em sedistinguir dos recém-chegados no jogo político e social. A genealogia não é a redução domundo social a uma matriz biológica, mas pode ter representado sua antecâmara. Por isto é quehá várias décadas os historiadores debatem se o momento das perseguições ibéricas e, emparticular, a invenção dos estatutos de pureza de sangue constituem uma primeira expressão doracismo político, cuja extensão e radicalização levaria aos desastres do século XX.Para levantar essa questão com o recuo necessário, convém inscrever os fenômenos defragmentação comunitária e perseguição no contexto global da formação de um espaçoeuropeu, a partir da Idade Média central. Em seu grande livro sobre a produção da Europa,Robert Bartlet analisa o que poderíamos qualificar como a primeira expansão europeia. É antesde tudo aquela que, do século XI ao século XV, caracteriza-se pela extensão da cristandaderomana, em detrimento do islã no sul (Portugal, Castela-Leão, Aragão, Itália meridional,Sicília) e do paganismo ao norte e nordeste (Prússia, Lituânia). É também o tempo daconquista e da diáspora dos senhores franco-latinos e normandos de regiões cristianizadas delonga data, como as sociedades célticas do arquipélago britânico (País de Gales, Irlanda,Lowlands da Escócia) ou as sociedades eslavas da Europa central (Boêmia, Polônia). Assim éque senhores normandos vêm a se instalar na Inglaterra, no País de Gales, na Irlanda, naEscócia, no sul da Itália, na Sicília, na Espanha, na Síria; borgonheses escolhem Castela ePortugal;os nobres saxões se assentam na Polônia, na Prússia e na Livônia; habitantes deFlandres, da Picardia, do Poitou, da Provença, da Lombardia se espalham pelo Mediterrâneo.Nos dois modelos, encontram-se elementos centrais de uma produção sociopolítica da fronteirasob a forma de colonização. O confisco de boas terras agrícolas em proveito de migrantesrurais, enquadrados por uma casta de conquistadores, é uma prática que se repete no reino deValença, no vale do Jordão e na Irlanda. Nesses casos, a nobreza local é substituída em suasfunções, seus membros se exilam e suas famílias se extinguem. Se acrescentarmos odesenvolvimento de culturas intensivas, como a da cana-de-açúcar na Sicília, não surpreendeque se tenha levantado a questão do caráter colonial desses assentamentos medievais, nosentido que o termo vem a adquirir nas épocas moderna e contemporânea.A pedido dos príncipes, as ordens de cavalaria também são convocadas a organizar acristianização e a vida coletiva em vastos territórios. É o que se dá em Castela, ao sul do Tejo,já no século XII. Foi igualmente este o caso da ordem teutônica convocada pelo rei daHungria, André II, em 1211, na Transilvânia, vindo a ser expulsa em 1225 por causa dosabusos cometidos. No meado do século, do outro lado do Vístula, a ordem empreende, apedido do duque polonês Conrado de Mazóvia, a conquista e cristianização da Prússia pagã.Até meados do século XV, a ordem continua a ampliar suas conquistas na região báltica, emapoio às cidades da Hansa, causando hostilidade entre poloneses e lituanos. Entretanto, essemovimento de expansão remodela o espaço político europeu do ponto de vista do exercício dasfunções políticas supremas. Foi necessário encontrar dinastias para portar as coroas dos novosterritórios conquistados para a cristandade. Se tomarmos a situação no século XIII, só osFolkunger da Suécia, os descendentes de Suenon Estritson na Dinamarca e os Piast da Polônianão são de ascendência franca ou normanda. Num total de quinze monarquias reais, cincodescendem diretamente da casa Capeto; das dez restantes, sete descendem em linhagem diretade casas do reino da França ou das regiões francófonas da Lotaríngia e da Borgonha. Durante odesenrolar desses processos, as aristocracias locais resistem à adoção dos entourages doscônjuges reais não indígenas. No século XIV, as dinastias reais da Hungria (Arpad 1301), daBoêmia (Premislid 1306) e da Polônia (Piast 1370) se extinguem. São sucedidas por reis deorigem francesa e alemã, até que se imponha a dominação dos Habsburgo.Nas diferentes regiões onde se dá a implantação de novos senhores, os vínculos com aspátrias de origem persistem por várias gerações. Esse fenômeno é grandemente facilitado pelofato de uma espécie de especialização ou reagrupamento ser determinada pelos pontos departida. Assim, os príncipes e cavaleiros do principado de Trípoli tendem a ser franco-meridionais, os de Antioquia, normandos, e pouco menos de metade dos de Jerusalém sãoflamengo-picardos. Ao mesmo tempo, a multiplicação dos intercasamentos com filhas defamílias locais produz efeitos de apropriação das sociedades conquistadas. Se tomarmos oexemplo da Europa oriental, notamos que, dos dezesseis primeiros margraves de Brandeburgo,oito desposaram jovens eslavas. Na Irlanda, o surgimento de novas famílias derivadas dasalianças de senhores anglo-normandos com mulheres irlandesas, ou às vezes o simples fato deos filhos desses senhores serem criados por amas de leite da ilha, acaba gerando uma sociedadeanglo-irlandesa, na qual os magistrados provenientes da Inglaterra não sabem mais onde estãopisando. Essa população, que acaba sendo designada pela expressão Old English, resulta de umduplo fenômeno conhecido da América ibérica: hibridação e crioulização. Não se deveimaginar, todavia, uma situação irênica de mestiçagem generalizada. Na Irlanda, osprincipados locais são liquidados e a coroa da Inglaterra promove bispos de língua não céltica.O francês na Síria ou o alemão na Livônia não deixam de ser puras línguas de conquista.Assim, em certos casos, os vínculos com o país de origem são cortados: é o caso daaristocracia escocesa de origem inglesa, que não toma partido da Inglaterra durante as guerrasdos séculos XIII e XIV. Assim também as famílias provenientes de além-Pireneus e que seempenham na conquista cristã do islã tornam-se espanholas e continuam a sê-lo nas guerras deconquista de Navarra. Da mesma forma, para citar um último exemplo, na Itália meridional, nofim do século XII, quase quatrocentos aristocratas normandos e francos implantam-se nocoração de uma sociedade composta de uma massa de lombardos, gregos e muçulmanos: amestiçagem então é inevitável. Com os muçulmanos, as pontes não podem ser muitofacilmente lançadas; entretanto, a vida comum é possível, pois certas famílias da nobrezamuçulmana sobrevivem às invasões cristãs. A vida ao lado dos mudéjares, que permanecemmuçulmanos em territórios controlados por príncipes cristãos, e depois dos mouriscos,muçulmanos convertidos mais ou menos de bom grado ao cristianismo, é uma experiênciasocial essencial para as três grandes unidades políticas da península Ibérica: Portugal, Castela eAragão.Dois terrenos permitem avaliar a complexidade desses movimentos, a evolução das línguase a formação das categorias raciais. A complexidade da paisagem linguística europeia de hoje,não obstante os estragos de duzentos anos de estruturação dos Estados-nação, ainda dátestemunho da infinita variedade de situações de épocas mais antigas. Nas regiões organizadasprecocemente em torno de casas reais capazes de difundir e impor padrões culturais — aFrança do norte, a Inglaterra, Castela, a Toscana —, persistem certas variações, mas numambiente suficientemente homogêneo para que a intercompreensão seja assegurada emterritórios bastante amplos. Em compensação, as zonas colonizadas caracterizam-se porplurilinguismos muito mais contrastados, como no País de Gales e na Irlanda. Muitas vezes, oscolonizadores aprendem as línguas locais. Assim é que, no século XIV, anglo-normandos (OldEnglish) compõem poesia em língua gaélica. Constatamos, com efeito, uma multiplicação deempréstimos semânticos nos dois sentidos: termos técnicos e mercantes alemães se impõem nalíngua polonesa, por um lado; por outro, termos agronômicos e administrativos árabes seinserem na língua castelhana.Do emprego das palavras ao reconhecimento das especificidades étnicas e culturais háapenas um passo. O ponto intermediário é sem dúvida a questão da nomeação das pessoas, aantroponímia que obedece a regras igualmente complexas. Observa-se que os camponesespoloneses adotam nomes germânicos, ao passo que os anglo-normandos estabelecidos no Paísde Gales e na Irlanda recebem nomes célticos, tornando-se difícil identificá-los comodescendentes dos colonos vindos da Inglaterra. É verdade que na Idade Média as diferençasétnicas são pensadas em termos essencialmente culturalistas. Paul Freedman mostrou que odesprezo cortês e nobre pelas classes subalternas funciona como uma matriz cultural para aestigmatização de todo tipo de população. A descrição dos diferentes povos frisa as diferençasde vestuário, penteados, língua, costumes e leis.BibliografiaBARTLETT, Robert. The Making of Europe. Conquest, Colonization, and Cultural Change, 950-1350,Princeton: Princeton University Press, 1993.BASCHET, Jérôme. La civilisation féodale. De l’an Mil à la colonisation de l’Amérique. Paris: Flammarion,coll. 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Moore, 1987, p.163.CAPÍTULO 3 Corporativismo e Estado de polícia como modelos de governodas sociedades euro-americanas do Antigo RegimeAntónio Manuel Hespanha* José Manuel Subtil**1. As monarquias corporativasA questão do modelo da política e do político nos séculos que antecederam as Revoluçõescomeçou por se pôr sob a etiqueta da questão do “Estado Moderno”, sobretudo quando umgrupo de historiadores — quase todos da Europa do Sul — começou a questionar a versãodominante de que o Estado nascera de um processo, variado e convergente, de centralizaçãopolítica que se desenrolava desde os finais da Idade Média e que teria encontrado formulaçõesteóricas precoces com Nicolau Maquiavel e com Jean Bodin, reclamando esse último comgrande ênfase a descoberta do conceito central de “soberania”, que identificava o Príncipe como Estado e que absolvia o poder de um e de outro de quaisquer limitações. Realmente, nem umnem outro disseram bem isso, sendo suscetíveis de muitas leituras, algumas muito dissonantesdessa versão.1Em contrapartida, esse grupo revisionista não encontrava facilmente paralelo para essesprocessos políticos e institucionais, nem para essas teorizações doutrinais ou jurídico-dogmáticas em zonas como a Itália, a Ibéria, a Áustria, duvidando mesmo que a história depaíses mais ao norte pudesse ser contada assim. Embora concordassem, em geral, que aReforma e a Contrarreforma tinham tido influências divergentes sobre a política: a primeirafavorecendo uma concentração dos poderes temporal e espiritual no rei — frequentementetambém chefe ou protetor das novas igrejas, pouco institucionalizadas, bem como novo senhordos bens eclesiásticos; a segunda reforçando a supremacia simbólica e doutrinal da IgrejaRomana sobre os príncipes católicos, embora — no plano institucional e político — essesúltimos tenham ganhado contrapartidas importantes (padroados ao nível do mundo, como osreis de Espanha e de Portugal; tribunais régios de inquisição; direitos de beneplácito e de regiaprotectio; bem como uma elevada autonomia diplomática em relação à diplomacia papal). Sejacomo for, a sua legitimação continuava estreitamente vinculada à fé e essa a um poder externo,internacional e organizado segundo uma hierarquia forte, cuja cabeça era o papa. No plano dadoutrina política, por outro lado, os “modernos” — não apenas Maquiavel ou Bodin, a que jános referimos, mas ainda a generalidade dos “políticos” (termo que designava os teorizadoresde um poder quase ilimitado dos reis ou das repúblicas, como Jaime I Stuart, Hugo Grócio,Thomas Hobbes e, depois, uma série de doutrinadores protestantes alemães e holandeses, entreos quais Baruch Espinosa, Cornelius van Bynkershoek, Samuel Puffendorf, Christian Wolff)— estavam proibidos, exercendo uma mínima influência sobre a cultura jurídica e políticaletrada, que continuava a ler Aristóteles, São Tomás de Aquino, Thomas Vio Cajetanus e aplêiade de juristas-teólogos da Escola Ibérica de Direito Natural (Francisco de Vitória,Domingo de Soto, Francisco Suarez, Bento Fragoso, Luís de Molina, Serafim de Freitas), cujainfluência chega à Inglaterra (via Robert Filmer, 1588-1653) e à Alemanha (via JohannesAlthusius, 1557-1638). Para todos esses, um reino era um conglomerado de jurisdições, queiam desde a do pai de família até a do concelho, da paróquia, do senhorio ou da guildacorporativa. Esses poderes incluíam a legitimidade de autorregulação e de composição delitígios, estando protegidos pelo direito comum (ius commune), não apenas contra asinterferências de outros poderes, mas ainda contra a interferência da própria Coroa. Naverdade, para o pensamento político da época, não havia uma fundamental incompatibilidadeentre a afirmação da soberania (majestas, superioridade, mayoría, como se diz nas SietePartidas) e essas prerrogativas dos corpos; do mesmo modo que, na Inglaterra, a soberania(sovereignty) do king in Parliament convivia pacificamente com a inderrogabilidade docommon law por um Act of Parliament (o chamado rule of law). Isso queria dizer que tambémnas monarquias tradicionais europeias nenhum particular (indivíduo ou corpo) podia serprivado dos seus direitos — tal como estavam configurados na tradição (iura radicata, foros edireitos) — sem uma decisão nesse sentido proferida por um tribunal comum. Nesse sentido,as diferenças que o clássico livro de Albert Venn Dicey Introduction to the Study of the Law ofthe Constitution*** encontra entre o primado da lei na Inglaterra e no continente decorremdeum confronto feito com uma situação da política continental muito mais tardia, já dos meadosdo século XVIII, quando os politólogos do continente — como Voltaire ou Montesquieu —comparavam a monarquia inglesa do seu tempo, já reestabilizada depois do regalismo dosStuarts ou o republicanismo revolucionário dos puritanos, com a Europa centro-ocidental dosdespotismos iluminados. Se recuassem uns cem anos, o confronto daria resultados talvezopostos, em que o continente se destacaria por regimes politicamente muito mais garantistas doque o momento inglês.Nas monarquias tradicionais, porém, a imagem inspiradora da compreensão do regimepolítico era a do corpo, com a sua natureza compósita e diferenciada, em que cada parte seautorregulava diferenciadamente, cooperando, à sua maneira e segundo o seu próprio modo deatuar, sem a imposição da vontade de nenhum órgão sobre outro órgão — nem sequer dacabeça — mas a composição harmônica de todos os interesses, pelo respeito escrupuloso dasesfera de autonomia (jurisdicional) de cada parte. Numa sociedade desse tipo, os conflitosentre os corpos (os conflitos políticos) constituíam disputas sobre “o seu de cada um”; comisso, fica claro que se tratava de conflitos que só podiam ser resolvidos em justiça, portribunais, segundo um processo paritário e provido de contraditório. Isso conferia àssociedades corporativas uma grande estabilidade; mas essa representava também um profundoconservadorismo social, com vias escassas de mobilidade social. Todas as mudanças de statustinham de ser legitimadas em justiça: precedidas por um processo, normalmente longo, dehabituação da sociedade ao novo estatuto social, que se adquiria por tradição ou por decisãojudicial conforme a direitos preexistentes (embora não patentes), que o tribunal reconhecia.O único processo de modificação instantânea da ordem era o processo miraculoso da graça.O rei, como alter ego de Deus, podia produzir modificações inovadoras e instantâneas no cursoda natureza (da tradição, do direito). Como quando emancipava um menor, legitimava um filhoilegítimo, fazia uma doação (ou seja, mudava a ordem estabelecida de atribuição das coisas),dava um ofício (o que, considerada a natureza patrimonial desses, equivalia ao mesmo),perdoava um condenado em justiça. Mas mesmo essa modificação extraordinária da ordemdevia obedecer a uma espécie de metaordem, a de uma justiça excelsa, supratemporal, quelegitimava os atos de graça. Por exemplo, a recompensa por serviços, a manifestação damagnanimidade real, a consideração de circunstâncias particulares a que a justiça geral nãopodia atender. Essa economia da graça nem sempre se reduzia à compensação de serviços pormercês, mas a uma série vasta de atos que, sem serem devidos em justiça, manifestavam no reiuma série de qualidades de percepção e de sensibilidade de que um juiz comum não dispunha.Assim, aquilo a que hoje chamamos tarefas de governo não podia ser mais do que açõesdirigidas a manter as jurisdições particulares. Reinar era, portanto, fazer justiça (iustitiamdare). E, por isso, os órgãos de governo tinham uma estrutura compósita — integrados pordistintas pessoas e de distintas formações ou proveniências, atuando segundo processos muitoregulados e formais, em que tudo era registrado sob formas quase notariais — que hoje noschoca pela sua como que buscada ineficiência. Na verdade, o que se procurava não era, de fato,a ineficiência, mas um modo de funcionar tão próximo quanto possível da ordem judiciária,cheia de garantias, de prazos para ouvir os vários interessados e de processos de contraditório.O próprio “governo” — como instituição de mando de topo — era constituído por um conjuntode conselhos, com competências frequentemente sobrepostas e litigiosas. Em algumas épocas,emergia, de entre os membros desses conselhos, um ministro a quem o rei ouvia mais ouatribuía uma especial preferência — o valido. Mas — se excluirmos, em Portugal, os casos doconde duque de Olivares e, em parte, do conde de Castelo Melhor — raramente esses validoscorporizavam uma política ou conseguiam fazer o curto-circuito da administração ordináriados conselhos. Totalmente diferente é já o caso de Pombal, que, mais tarde, manteve uma linhapolítica consistente, sustentada e de âmbito geral; ou, em grau semelhante, os Sousa Coutinho,no reinado de D. Maria. O mesmo acontecia com “juntas” mais ou menos efêmeras e de móvelconstituição. Do mesmo modo, a vida política e civil dos particulares carecia de frequentesregistros notariais que garantissem a prova de sucessos que modificassem a situação jurídicade cada um, nos mais diversos planos — aquisição de bens, provas de status (ou fama públicade certa qualidade ou direito), declarações de intenções etc.Já se pode imaginar qual tinha necessariamente de ser, nesse contexto, a centralidade dodireito e dos juristas. Não, porém, do direito do rei (a lei). Esse estava bem longe de constituiro único direito. Ao lado dele, vigorava o direito da Igreja (direito canônico); o direito dosconcelhos (usos e costumes locais, posturas das câmaras); ou os usos da vida, longamenteestabelecidos e sobre que houvesse consenso, que os juristas consideravam como deobediência obrigatória, tanto ou mais do que a lei do rei. De resto, como também um dosautores (A.M. Hespanha, “Da ‘iustitia’ à ‘disciplina’. Textos, poder e política penal no AntigoRegime”, Anuario de história del derecho español, Madri, 1988) mostrou num estudo comalguns anos, a lei do rei tampouco era aplicada de forma inexorável e sistemática. Os juízesentendiam que a aplicação da lei devia ser matizada pela avaliação da sua justeza em concreto,tarefa que lhes caberia essencialmente e sobre a qual mantinham um poder incontrolado,escudados na doutrina jurídica do direito comum. No caso da lei penal, a sua aplicação devia,além disso, ser misericordiosa. Daí que, apesar de as Ordenações portuguesas preverem a penade morte para uma série enorme de crimes, ela ser excepcionalmente aplicada, pelo menos atéo Iluminismo.Repetimos. Numa sociedade desse tipo, marcada pelo pluralismo político, também o direitonão poderia deixar de o ser. Ou seja, em vez de um direito geral, válido territorialmente,multiplicavam-se as jurisdições (ou prerrogativas de declarar direitos particulares), de origemconsuetudinária ou concedidas por privilégio. Do mesmo modo que se desmultiplicavam osdireitos particulares, desiguais, hierarquizados, uns eventualmente ofensivos dos outros,sintomas da estrutura conflitual da sociedade, cristalizada e garantida justamente nessapluralidade de micro-ordens jurídicas.Acrescentemos desde já um par de coisas, para evitar o proliferar de mitos e mal-entendidos(Paulo Ferreira da Cunha, “As liberdades tradicionais e o governo de D. João VI no Brasil.Ensaio histórico-jurídico preliminar”, Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero [...], 32,2003).Em primeiro lugar, as limitações que daqui advinham ao poder da Coroa não tinham nadaque ver com a garantia de direitos (gerais, individuais, padronizados) que, mais tarde, há deaparecer com o constitucionalismo contemporâneo; os antigos direitos eram corporativos, aosquais seriam profundamente antipáticos os novos direitos individuais, pelos quais ocorporativismo tinha um mais do que diminuto apreço e contra os quais, na altura em quecomeçaram a ser propostos, logo reagiu, como sinais de dissolução de uma ordem baseada nadesigualdade.Em segundo lugar, essa estrutura particularista do direito, com o referido viço deliberdades, é um fenômeno que se relaciona com a ordem jurídica do ius commune, comum emtoda a Europa Central e Ocidental (v. inúmeros escritos de Paolo Grossi; Bartolomé Clavero;Angela de Benedictis; Pablo Fernandez Albaladejo; Jean-Frédéric Schaub; e muitos outros).Não constitui nenhuma particularidade nem ibérica nem portuguesa, baseada em algumpatrimônio anímico nacional (?!), de possível origem pré-românica, como tem pretendido umalinhainterpretativa mítica, cujas fontes são invariavelmente as leituras míticas dos ensaístasmais dados à poesia e aos saberes ocultos (Teixeira de Pascoais, Agostinho da Silva etc.). Nemtampouco o resultado de um contínuo contato intercultural — descrito como quase fraternal (!)— com árabes e judeus. Esse mito — que a leitura das fontes históricas em massa desmente(como constatou, entre outros, um historiador da dimensão de Ch. R. Boxer) — tem origemnuma estimulante — mas polêmica e, hoje, passada a época das grandes explicaçõesensaísticas, objeto de mera consideração historiográfica — interpretação de Américo Castro(1885-1972) quanto a uma alegada identidade ibérica. Toda a bacia do Mediterrâneo conheceua mesma convivialidade — e até bem mais pacífica; enquanto que judeus houve por toda aEuropa, nomeadamente central e ocidental. Mas, sobretudo, esquece-se que mesmo a pretensa“assimilação” é tão violenta e etnoexclusiva como a segregação; como se esquece que, nessasamáveis paragens ibéricas ainda no século XX se denunciou vigorosamente (quase todos osintegralistas e, entre os juristas, uma figura como L. Cabral de Moncada) o perigo judaico eainda algum historiador de hoje se pergunta se a invasão holandesa do Brasil não terá sidopaga com dinheiro judaico...Em terceiro lugar, o viço desse pluralismo jurídico ultramarino não tem a ver com qualquerlei histórica, que torne mais fácil a preservação do atávico nas periferias — ou seja, dos taispristinos sentimentos jurídicos neoceltas entre a sensibilidade jurídica dos goeses, macaensesou timores (!!!). Resulta, isso sim, de a distância do centro ter reforçado o corporativismo dosmodelos sociais da metrópole e aumentado a sua resistência à usura liberal. A tal ponto que opróprio “liberalismo” constitucional oitocentista está ainda repassado de ingredientescorporativos, como tem abundantemente mostrado a melhor historiografia espanhola e latino-americana (Marta Lorente, Antonio Aninno, François-Xavier Guerra, Tamar Herzog, JoséCarlos Chiaramonte, José Maria Portillo).Mais livre de limites e de formalidades e mais ágil era o governo da casa do rei, no qualesse agia como um normal pai de família. Com a diferença de que a casa desse “marido daRepública” abrangia muitos assuntos que hoje consideraríamos de governo político, e nãodoméstico. Desde a alta Idade Média que os juristas tinham identificado algumas matérias quecompetiam essencialmente (quae ossibus regis adhaerent, que aderem aos ossos do rei) a essegoverno da casa do rei — os “direitos reais, ou regalia (enumerações em: texto Quae sintregalia, dos Liber feudorum, incorporados na versão medieval do Corpus iuris; Ordenações[Ord.fil]., II, 26; Regimento da fazenda de 1516, c. 237). Basta uma leitura do título 26 dolivro II das Ordenações filipinas para nos darmos conta do caráter heterogêneo dos direitosaqui considerados. Referem-se à criação de magistrados e oficiais, de guerra e de justiça; àautorização de duelos; à cunhagem de moeda; ao lançamento de pedidos, fintas e tributos; àexigência de serviços na paz e na guerra; ao domínio das estradas, dos portos, do mar adjacentee das suas ilhas, bem como das salinas e das pescarias; ao domínio das minas; à exigência deportagens e barcagens; ao domínio dos tesouros, dos bens vagos (res nullius) ou que tivessemvagado, dos bens dos condenados a confisco e dos infames, bem como os bens que o direitopenal considerava perdidos para a Coroa; às heranças vacantes etc. No caso português, a listado título II, 26 terminava por uma cláusula geral — “e assim geralmente todo o encarregotanto real como pessoal, ou misto, que seja imposto pela lei ou por costume longamenteaprovado” (II, 26, 33). Assim, os juristas procuravam substituir essas enumerações,incompletas, por uma definição. E, assim, definiam os direitos reais como os direitos quecompetem ao rei enquanto pessoa pública. Foi isso que permitiu que, mais tarde, essa esfera dogoverno doméstico real fosse sendo considerada como uma esfera de governo político, maislivre do que o tradicional governo jurisdicional da república.A paisagem política europeia tendia, por razões ideológicas e por razões práticas, para essaorganização corporativa da sociedade. Na verdade, ela constituía a sobreposição de váriasexperiências políticas, em que as primeiras nunca tinham sido completamente absorvidas pelasseguintes. Resíduos do sistema político imperial romano (como o direito romano)combinavam-se com estruturas políticas ulteriores, como as da organização eclesiástica —com a sua legitimidade sobrenatural característica e com a sua estrutura beneficial dos cargos—, as dos reinos germânicos — com as suas concessões políticas precárias contra obrigaçõesde serviço —, a da emergência das comunas e das guildas — com a sua apropriação de poderesde autorregulação —, como as do mundo doméstico — com o seu fechamento a poderesinvasivos. Todas essas autonomias de poder, de regulação e de julgamento constituíamjurisdições corporativas, ordens jurídicas a par de ordens jurídicas, sendo o todo mantido emequilíbrio por uma sofisticada construção jurídica de harmonização desse mundo dejurisdições.Por outro lado, a essas razões culturais e históricas somavam-se componentes logísticas.Vejamos o caso de Portugal. Os juízes de fora, ainda que fossem instrumentos do poder realde que tanto se fala, só existiam, até aos finais do século XVIII, em cerca de 20% dosconcelhos. Um livro de um dos autores, já com quinze anos, provou isso abundantemente(última edição, António Manuel Hespanha, As vésperas do Leviathan. Instituições e poderpolítico [Portugal, séc. XVIII], Coimbra, Almedina, 1994, 682 p., reedição remodelada daedição espanhola de 1990). Mais recentemente, trabalhos importantes, nomeadamente de NunoGonçalo Monteiro e de José Manuel Subtil, aperfeiçoaram a prova. E uma tese de mestrado deCristina Nogueira da Silva (O modelo espacial do Estado moderno, reorganização territorialem Portugal no final do Antigo Regime, Lisboa, Editorial Estampa, 1998) mostrou como, aindanos anos finais do Antigo Regime, o apego dos concelhos às suas justiças ordinárias erafortíssimo. Embora os poderes dos senhores portugueses não fossem tão extensos eincontrolados como no centro da Europa, cerca de 2/3 dos concelhos do reino pertenciam asenhores, que aí administravam a justiça. E, em cerca de 1/3, esses senhores das terras podiammesmo impedir a entrada dos magistrados régios (corregedores) encarregados de inspecionar ogoverno local. Também isso está abundantemente provado hoje, muito embora se discutamalgumas questões relevantes nesse plano: (i) qual o controle efetivo dos senhores sobre as suasterras; (ii) qual o grau de curialização da nobreza portuguesa e em que é que isso consistia; (iii)qual o impacto prático da existência de uma justiça senhorial intermédia. Depois, se quisermosavaliar a importância do poder real, temos de pôr a questão da eficácia da máquinaadministrativa da Coroa e, mesmo antes, dos meios de conhecer o reino.O aparelho administrativo da Coroa era muito débil. Dos cerca de 1.700 oficiais que aCoroa tinha ao seu serviço em meados do século XVII, uns 500 estavam na corte. No resto dopaís, apenas 10% das estruturas administrativas pertenciam à Coroa, o que quer dizer que, paracerca de 12 mil funcionários concelhios, senhoriais e de outras entidades (excluídos, em todo ocaso, os oficiais eclesiásticos), havia 1.200 da Coroa. A essa fragilidade dos aparelhosburocráticos soma-se a falta de recursos financeiros da Coroa, pois a subida das suas rendasdurante os séculos XVII e XVIII não era bastante para melhorar substancialmente o magroaparelho burocrático a que antes nos referimos (v. o capítulo “A fazenda” de O Antigo Regime[A.M. Hespanha, dir.], História de Portugal, José Mattoso (coord.), Lisboa, Círculo dosLeitores, 1993, pp. 203-238). A essa falta de meios da coroa para governar o Reino teríamosainda de acrescentar uma referência ao deficienteconhecimento do próprio território — de quenão houve representações cartográficas detalhadas ou contagens demográficas precisas até aosinícios do século XIX — e às dificuldades e demoras das comunicações internas — másestradas, deficiente serviço de correios.Também o direito do rei (a lei) não era o único direito. Ao lado dela, vigorava o direito daIgreja (direito canônico); o direito dos concelhos (usos e costumes locais, posturas dascâmaras); ou os usos da vida, longamente estabelecidos e sobre que houvesse consenso, que osjuristas consideravam como de obediência obrigatória, tanto ou mais do que a lei do rei. Deresto, como se disse, a lei do rei tampouco era aplicada estritamente.E, quanto às decisões políticas, a vontade do rei estava sujeita a muitos limites. Ele tinha deobedecer às normas religiosas, porque era o “vigário” (o substituto) de Deus na Terra. Tinha deobedecer ao direito, porque esse não era, como vimos, apenas o resultado da sua vontade.Tinha de obedecer a normas morais, porque os poderes que lhe haviam sido conferidos tinhamsido para que ele realizasse o bem comum. E, finalmente, tinha de se comportar como um paidos seus súditos, tratando-os com amor e solicitude, como os pais tratam os filhos. E isso nãoera apenas poesia. Muitas entidades controlavam o cumprimento desses deveres do ofício dereinar. A Igreja, por exemplo, que continuava a deter a perigosa prerrogativa de excomungar orei, desligando os súditos do dever de lhe obedecer. Por isso é que as crises com o papado —que se multiplicavam durante os reinados de D. João V a D. José — eram politicamente tãosérias. Os próprios tribunais podiam suspender as decisões reais e declará-las nulas. E issoacontecia frequentemente, tanto nos tribunais superiores como nos juízes concelhios, por todoo reino, em questões grandes e pequenas.Tudo isso estava tão abundante e solidamente sedimentado na teoria política que até aopombalismo não se cessou de repetir os tópicos corporativos, descrevendo o poder real comoum poder limitado, a Constituição como o produto indisponível da tradição, o governo como amanutenção dos equilíbrios estabelecidos, o direito como um fundo normativo provindo danatureza. Nesses termos, todos os acenos da teoria política moderna para um governo baseadona vontade, nomeadamente na vontade arbitrária do rei, eram geral e enfaticamente rejeitados,mesmo quando possam ter tido momentos de fascínio no âmbito dos círculos cortesãos eintelectuais, como têm mostrado trabalhos de Ana Isabel Buescu e de Ângela Barreto Xavier.Digna de uma análise porventura diferente é a literatura histórica e política referente aoultramar, em que os tópicos maquiavélicos da exploração da conjuntura e do artificialismo dopolítico parecem ser mais frequentes. Assim, os limites ao governo provinham mais dessecontrole difuso e quotidiano do que, como frequentemente se diz, da reunião regular das cortesque, nessa altura, tinham uma função sobretudo consultiva e cerimonial. “Sem o conselho [dosjuristas], o príncipe não pode editar leis, ainda que o possa fazer sem a convocação de cortes”,escreve um jurista do século XVII, repetindo a opinião comum.Tudo isso muda pelos meados do século XVIII. O processo é bem conhecido, para Portugalsobretudo, depois dos trabalhos de José Manuel Subtil. Muda, desde logo, o imaginário dopoder, que agora é assimilado a uma disciplina (Disziplinierung; emprego a palavra alemã parasalientar o sentido ativo da expressão, a ação de disciplinar) de um mundo aliás tornadocaótico por formas irracionais, supersticiosas, bárbaras, feudais, de governo. Modernização datradição rotineira e obsoleta, racionalização da ordem acrítica, livre exame da razão política,estendida à construção de uma ciência da polícia (Science de la police, Polizeiwisenschaft) ouciência da câmara do monarca (Kameralwissenschaft), o novo arquiteto dessa cidade políticamarcada não pela naturalidade, mas pela artificialidade. Tudo isso se pode relacionar — comofoi aventado por R. Koselleck por uma nova percepção do tempo, marcada pela erupção daexperiência de um tempo descontínuo, em que a contemporaneidade deixava de poder sersimultânea com a não contemporaneidade (o passado ou o futuro). Isso teria provocado umaruptura com o passado que tanto deixa de ter a ver algo com o presente como não pode maisservir de fundamento de um projeto para o futuro.Por outras palavras, inaugura-se a época do progresso, revolucionário ou não, no mesmopasso em que se abandona a ideia antiga, coperniciana, de revolução (De revolutionibusorbium caelestium, 1543) e de “restauração” ou de “regeneração”. Assim, muito da literaturada segunda metade do século XVIII — sobretudo a de matriz pombalina — está repleto desinais dessa nova experiência de que o passado está cheio de irracionalidade, superstição,ignorância, falta de luzes e que o mundo político a criar há de, em contrapartida, ser guiadopela luzes, pela racionalidade, pelo melhoramento, pela utilidade do presente (e não pelastradições passadas). O termo “regeneração” continua a aparecer — e, com ele, a ideia de queos males do presente se relacionam com o esquecimento ou degeneração dos bons costumes edas instituições primevas. Mas, na boca de muitos dos reformistas, isso soa, claramente, aafirmações apenas sedativas, propiciadoras de um consenso com um sentimento comum, nãoelitário, de que o contemporâneo podia (e devia) ser não simultâneo, partir e incorporar onúcleo mais permanente do passado para garantir um futuro mais sustentado e mais autêntico.Apesar de incluir propostas de ruptura absoluta, o vintismo chamou-se a si mesmo“regeneração”; e o preâmbulo da Constituição de 1822, apesar de tudo o que de novo nela há,não deixa de tocar todos os acordes “restauracionistas”.Não parece que o mesmo momento, agora no cenário brasileiro, fosse fundamentalmentediferente. Embora aí a experiência do tempo não conseguisse tão facilmente conciliar asexpectativas com as lembranças, o futuro com o passado, a novidade com a tradição, issoacontecia porque, sob a pressão dos acontecimentos políticos que empurravam o Brasil para aseparação política com Portugal (mas não necessariamente com a dinastia e provavelmente nãotanto como se supõe com um “absolutismo brasileiro”) se forja a imagem de um passadoinsuportável. Essa imagem ainda hoje subsiste em muita historiografia brasileira; mas é poucoconsistente, tanto com o que hoje se sabe sobre a autonomia fática brasileira de Antigo Regimecomo com a sustentada e pouco problemática acomodação do Brasil independente com algunsdos traços mais incômodos desse passado — a escravatura, o casticismo étnico, opatrimonialismo do poder (agora com outros donos), o prolongamento da domesticidade nocaciquismo e clientelismo, a eclusão dos nativos, as miragens do centralismo político etc. (emsentido não convergente, o estimulante livro de Valdei Lopes de Araújo A experiência dotempo. Conceitos e narrativas na formação nacional brasileira [1813-1845], São Paulo,Hucitec, 2008). Em Portugal, o forjar de mitos sobre a recusa e irreversibilidade do passadotambém teve lugar, em toda a literatura comemorativa da Revolução vintista, que também aquichega até hoje. Mas a contínua erupção do fundo tradicionalista e revivalista — com omiguelismo, com a Maria da Fonte, com o integralismo, com o salazarismo — torna claro quese tratava de mitos e que o conceito de um tempo descontínuo e progressista veio muito acalhar.Tem-se discutido, para o caso português, quando é que essa mudança de paradigmaspolíticos ocorre, de forma decisiva, irreversível e sustentada. Apesar de opiniões em contrário(nomeadamente, de Nuno Monteiro, D. José. Na sombra de Pombal, 2006), cremos que aopinião largamente dominante de que o momento de crise do corporativismo e decorrespondente ascensão — ainda de demorada consumação — corresponde ao “momentoPombal”, continuado substancialmente em todo o perturbado período que desemboca em 1822.Asrazões e os processos desse trânsito foram objeto de estudos recentes, de onde constamabundantemente os dados empíricos que podem fundar a tese (José Subtil, O terremoto político[1755-1759] — Memória e poder, 2007).Os espaços ultramarinos, sem distinções de maior, ainda se abriam mais a essa dispersão dejurisdições. Por um lado, a distância, o isolamento e as solidariedades que esses geram faziamnascer aí corpos suplementares — municípios, ayuntamientos com os seus cabildos,comunidades nativas autônomas, senzalas de povos deslocados, novas guildas profissionais ounovas corporações territoriais. A própria Igreja não escapava a esse movimento decissiparidade, que autonomizava congregações, que desenhava comunidades de fiéis, queflorescia em irmandades. Ao passo que o mundo doméstico se reforçava em fazendas,engenhos, encomiendas, mesclando os núcleos familiares de sangue com parentescos políticos(peões, gaúchos, escravos, libertos, apaniguados). Também esse mundo gozava de liberdadescorporativas, que, a seu tempo, se haviam de fazer ouvir, como as da metrópole, contra asintromissões do rei (como acontece nas colônias americanas da Inglaterra), ou hão de procurarencontrar o seu lugar nas primeiras ordens constitucionais, aparentemente liberais, mastambém profundamente permeáveis à reinstitucionalização das realidades corporativascoloniais. Assim, a imagem de centralização ainda é mais desajustada quando aplicada aoImpério ultramarino. Aí, alguns módulos (Timor, Macau, costa oriental da África) viveram emestado de quase total autonomia até o século XIX. Mas mesmo a Índia, que era objeto de umcontrole tornado muito remoto pelos nove meses que demorava a comunicação com ametrópole. Apesar de, como já se sugeriu, a teoria da ação política relativa ao ultramar ser algomais permissiva, na medida em que, por um lado, se tendeu, por vezes, a ver nas “conquistas”algo semelhante a um patrimônio do rei, que ele administraria como coisa sua — administratiodomestica, segundo as flexíveis normas da oeconomia, um pouco como as crown coloniesinglesas; e, por outro lado, porque nesses territórios de fronteira e de guerra viva, os padrões deuma administração militar — baseada na extraordinaria potestas. Nada, porém, que, segundocremos, possa justificar a subversão dos modelos corporativos do governo, caracterizados pelaperiferização do poder e pela ausência de um poder central assimilável ao Estado que virádepois. Embora essa seja a avaliação para que tendem prestigiados historiadores como LauraMelo e Sousa, Francisco Bettencourt e Diogo Ramada Curto; com toda a cordialidadereiteramos que, quando não se trate de uma aceitação um pouco fora de época de umahistoriografia comemorativa do feito da descolonização (que, para o Brasil, já tem 200 anos...),parece consistir numa visão que descreve algumas árvores — eventualmente de grande porte— mas perde por completo de vista o conjunto da floresta. Nesse caso, da floresta de poderesque se afirmavam autonomamente, discreta ou enfaticamente, nas periferias ultramarinas, aocidente e a oriente.O mais interessante, nessa avaliação contraditória, é que — tal como acontece na AméricaLatina ou mesmo na América do Norte — é depois das rupturas revolucionárias que se vêainda mais claramente a vitalidade desses poderes, agora em luta contra a afirmação dos novosEstados pós-coloniais. Em muitos casos, isso conduz a uma pulverização das unidadespolíticas coloniais (e não por causa da força centrípeta das comunidades nativas, mas da forçadesagregadora dos cabildos municipais dominados pelas elites coloniais). A ponto de se falar,no processo de constituição das identidades nacionais latino-americanas, de uma transição davecindad para a ciudadanía. Mas não é menos significativa — como vem notando a melhorhistoriografia constitucional latino-americana (Marta Lorente, António Aninno, François-Xavier Guerra, Annick Lampiere, Bartolomé Clavero) — a extraordinária supervivência daConstituição de Cádis na América Latina, a mesma que não resistiu mais de três anos nametrópole. Isso não pode ser separado (como tem sido notado) da sua permeabilidade àestrutura corporativa, ainda mais arcaica, das sociedades latino-americanas. Tanto que astentativas de implantação de Estados nacionais, dotados de constituições “liberais-estadualistas” (1853, Argentina; 1857, México), saldaram-se em fracassos mal encobertos pelamanipulação corporativa dos mecanismos liberais que elas teoricamente continham — como aconcessão quase universal da cidadania (masculina) e o consequente universalismo dosufrágio. Porém, mesmo o pensamento político das primeiras décadas da Revolução americanaestá tingido desse corporativismo. Também aí, o que dispara a revolta é a ofensa pela Coroa dedireitos particulares, de particulares e de corpos. Isso traduz-se no próprio texto de algumas dasprimeiras constituições (como a da Virgínia), em que a influência de William Blackstone, elemesmo um jurista inglês tradicionalista, transparece com alguma frequência. A família seguesendo um corpo político (que integra filhos, criados e escravos) e são-no também as naçõesíndias. E, na verdade, a revolta com que a Coroa se confronta é uma revolta de corpos (ascolônias, com as suas assembleias) e pouco de indivíduos. Como bem notaram, a seu tempo,Bartolomé Clavero e Jack Green. Bartolomé Clavero, nomeadamente, fez a demonstraçãodesse aspecto ao estudar a seção I da Constituição da Virgínia (de 29/8/1776) (“That all menare by nature equally free and independent and have certain inherent rights, of which, whenthey enter into a state of society, they cannot, by any compact, deprive or divest their posterity;namely, the enjoyment of life and liberty, with the means of acquiring and possessing property,and pursuing and obtaining happiness and safety”). Segundo ele, apesar da aparente clarezadas palavras utilizadas — se diria, da familiaridade e banalidade de expressões como “all men”— seria necessário mergulhar nas fontes textuais, nomeadamente nos Commentaries on theLaws of England, de William Blackstone (Oxford, 1765), ou no Le droit des gens ou principesde la loi naturelle, de E. de Vattel (Londres, 1758). Um contexto que, nesse caso, cortaria deforma absoluta o sentido originário do texto com toda a tradição que, ulteriormente, o virá areivindicar. Pois, inserida na economia da obra de W. Blackstone, a referência a “all men” serelacionaria não com as liberdades individuais, mas com as liberdades corporativas dacommom law de então, a qual excluía, desde logo, a liberdade dos criados (submetidos aopatrão; cf. Blackstone, I, cap. 14), a liberdade das esposas (submetidas aos maridos, cf.Blackstone, I, cap. 15), a liberdade dos filhos (submetidos aos pais, cf. Blackstone, I, cap. 16),a liberdade dos órfãos ou dos “incapazes” (submetidos aos tutores, cf. Blackstone, I, cap. 17);apenas se retinha da ideia da liberdade dos sujeitos aquilo que era funcional em relação àsreivindicações das comunidades coloniais — elas mesmas corporativamente imaginadas como“pessoas” [persons, corporations] — em relação à Coroa britânica.Apesar dessa longa continuidade de vitalidade corporativa no ultramar — nomeadamenteno ultramar americano (e, até, norte-americano; embora, aí, as próprias matrizes europeias jálevassem consigo fortes elementos desagregadores do corporativismo — individualismo,republicanismo moderno, contratualismo) — é claro que se notou no ultramar, desde Macau aoBrasil, o impacto da política da disciplina.2. O governo pela disciplina: impulsos, êxitos e limitaçõesAnalisando o funcionamento do sistema político podemos compreender melhor a mudançaconsubstanciada no aparecimento de novas regras de governo que produziram novas práticas,novos políticos, novos saberes e conhecimentos que reposicionaram os lugares de poder e asconfigurações do campo do poder dominante. Em contrapartida, a assunção da formação donovo modelo político criou também, naturalmente, novascondições para a reprodução daselites.O que não mudou ou não foi possível mudar durante o reinado de D. João V tornou-seinsolúvel politicamente depois do terremoto de 1755. Se compararmos os últimos anos do“Magnânimo”, especialmente depois da “reforma” das secretarias de Estado (1736), com osúltimos anos da década de 1760, no auge da pulsão reformista pombalina, concluímos que emcerca de 35 anos muito mudou no sistema político em Portugal.O conjunto dos tribunais e conselhos que estavam em funções no reinado joanino remonta afinais do século XVI. A “novidade reformista” do gabinete dos secretários de Estado, em 1736,fundamentalmente ligada a uma reforma do despacho régio que acelerasse o expedienteadministrativo, sobretudo de mercês, comendas, privilégios, senhorios e nomeações para ajustiça e fazenda, não resistiu à absorção pelo corporativismo e colapsou em todas asdimensões. A situação das secretarias de Estado no final dos anos 1740 era de enormeconfusão burocrática e administrativa, permeável e disponível aos tradicionais jogos de poder,desfalcada de secretários e tão transitória como a doença prolongada do monarca. Aintervenção política dos secretários de Estado nunca contou com o pluralismo político de antes,nem visou a uma alternativa à pluralidade e autonomia dos poderes tradicionais. O sistemapolítico, por sua vez, continuava dominado pelos mesmos grupos de elite, no seu conjuntoperto de uma centena e meia de dirigentes, ou seja, substancialmente, igual — no recorte sociale nas matrizes da sua legitimação — aos do século XVII (dados em José Subtil, O terremotopolítico de 1755. Memória e poder, op. cit.).O único governo “ministerial” de D. João V foi um governo “de inclusão” política queprolongou e manteve os efeitos sociais negativos das compensações e dos equilíbrios entre osprivilégios e as suas limitações. Já os vários governos josefinos/pombalinos assentaram naexclusão política para discriminar, para diferenciar, para garantir outro tipo de agregação queimpedisse a resistência às reformas e garantisse a consolidação das mesmas. Ao passo quemuitas dessas reformas apontavam para uma clara atenuação dos poderes tradicionais sob aégide de um governo de Estado.Se o novo poder está bem identificado num conjunto de instituições ligadas àadministração, segurança e economia, como adiante se verá, o certo é que para se perpetuar,manter e reproduzir teve de o fazer por intermédio de outras instituições, menos visíveis doponto de vista político, que pode parecer, num primeiro olhar, nada terem a ver com o núcleoduro do poder — as instituições de ensino. Desde logo, o sistema escolar das primeiras letrasassegurado, mais tarde, pela Junta da Diretoria Geral de Estudo e Escolas do Reino (17 dedezembro de 1794). Depois, pela reforma da Universidade de Coimbra (1772), que produzirianovos saberes quase todos identificáveis — nos autores e no cânone literário — com oambiente das “luzes”, que despertava em toda a Europa. Essa nova ligação cultural começoupor dissimular os objetivos mais amplos, mas acabaria por conduzir a uma estratégia profundade renovação das elites. Os dirigentes pombalinos afirmaram-se com um novo tipo de saberalicerçado que, embora usando uma etiqueta antiga, a da Boa Razão, lhe dava agora uma voltasemântica que a identificava, já não como “bem comum”, mas com a razão política quepersegue o bem (o interesse, a utilidade) público. A própria aristocracia era tocada por esserationistic turn, ganhando outras visões do mundo inculcadas pelo ensino e pelas artes doColégio dos Nobres (1761).Aos novos poderes somaram-se, assim, novos saberes, novos conhecimentos e novosatores. A produção e a reprodução desses instrumentos e capitais políticos tiveram efeitosimediatos na exclusão do campo de poder das “velhas e tradicionais” classes aristocráticas quedeixaram de poder usar com eficácia os seus privilégios na luta pelo domínio político ousequer resistir ao processo de absorção das reformas e dos grupos dominantes que emergiram.A identificação e o reconhecimento político mudaram de forma significativa. As novastutelas reclamaram-se de racionalistas, utilitaristas e empiristas, autônomas em relação àautoridade religiosa, portanto utilizadoras de um conhecimento liberto da religião e maisdirecionado para a ciência, isto é, a teologia e a política passaram a organizar-se cada uma àsua maneira. A expulsão dos jesuítas (3 de setembro de 1759), precisamente no primeiroaniversário do atentado a D. José, ocorreu, segundo os argumentos da época, por causa “daingerência nos negócios temporais”. A publicação da obra Dedução cronológica e analítica(1767) encarregou-se de discriminar a diversidade de outros argumentos e dar unidade políticaa todos os ingredientes desse programa regalista e secular. O marquês Cesare Beccaria, porexemplo, iria classificá-la como “l’opera ammirabile” e homenageava o marquês de Pombal aoafirmar que “era necessario si grande Eroe, per liberare I Mondo de si orrorosa Gesuiticapeste” (1767).Essas doutrinas e particularidades aproximam o processo político de mudança dasespecificidades do cameralismo (Cameralwissenschaft, Kameralien, do termo latino camera,câmara real, lugar da intimidade e de manifestação da vontade reguladora do príncipe), assimcomo na ação concernente à “ciência de polícia (Polizeiwissenschaft, Polizei, afirmação davontade do rei no sentido do “policiamento/polimento” da cidade, a boa razão, como razão deEstado, entre as outras razões). Um conjunto de novas ideias sobre os mais diversos campossociais, como as finanças, a economia, a segurança, as prisões, a saúde pública, a educação,isto é, em diferentes áreas da atividade jurídica, política, social e cultural. Ideias quepreconizavam e apelavam a ação, refutando o imobilismo da administração passiva queconsumia os poderes públicos em lugar de os modelar para a “felicidade dos povos”.Esse novo pensamento sobre o conjunto das atividades governativas teve consequênciasprofundas na relação entre o poder, a sociedade e o indivíduo, ao centrar-se em técnicas quepassaram a codificar as relações sociais destinadas, agora, a conduzir as condutas dosindivíduos para regular e normalizar os comportamentos. O poder passava a estar interessadoem agir nas relações entre os indivíduos e menos na ação direta sobre cada um, como eratimbre nas relações entre soberano e súdito. Compreende-se que nesse novo paradigmapolítico-administrativo o objetivo da ação passasse a incidir sobre entidades abstratas, como a“população” e o “território”, o que obrigou ao recurso de novas disciplinas científicas, como ademografia, a geografia, a estatística, a saúde pública, a educação pública e a gestão dosrecursos financeiros.Se para o sistema corporativo de organização do poder o modelo de gestão era isomórficoda família, para o sistema disciplinar moderno devia incorporar novas grandezas, como o das“massas de indivíduos”, o que introduzia um fator de ruptura na concepção da arte de bomgovernar, isto é, as instituições administrativas passaram a ter de implementar padrões denormalização como segmentos de uma nova ordem disciplinar, um regime sem precedentes.O reconhecimento e o assentamento desses novos princípios foram definidos pela “razão”inculcada pelo “interesse público” para converter consentimentos num número cada vez maiorde pessoas, sintonizando as condutas e as relações de uns com os outros e permitindo aformação de uma economia de pertinência. A direção desses movimentos e os novos regimescanônicos recolhiam-se na proveniência iluminada da vontade e da ação do príncipe parapromover a riqueza dos povos, suprir as faltas e dominar os meios necessários e úteis àfelicidade (Francisco Coelho de Sousa Sampaio refere-se ao direito da polícia, ver AntónioManuel Hespanha, Poder e instituições na Europa do Antigo Regime, Lisboa, FundaçãoCalouste Gulbenkian, 1984, pp. 395-541, como suporte da “felicidade do Estado”).Acima de tudo, esseprojeto político obrigou o príncipe a recorrer a uma novaadministração financeira capaz de arrecadar com eficiência os impostos destinados ao “bemcomum”, com a “boa razão” que a tudo deve preferir.De resto, tanto o cameralismo como a ciência de polícia enunciavam também uma novadoutrina sobre o recrutamento do oficialato régio e a função dos ofícios para o “bom governo ea economia”, funcionários “meritórios”, tecnicamente competentes para lidarem com osmodernos instrumentos de gestão (meritocracia), qualidades que nem o ensino tradicional dodireito oferecia nem estavam compreendidas na deontologia tradicional do ofício (centrada nanobreza, na honestidade ou “limpeza de mãos”, na bondade, na lealdade ao serviço do rei).Mas essa transformação profunda, ocorrida em meados do século XVIII, não resultou deuma acumulação de reformas. Foi uma mudança repentina que absorveu todas essas teoriasinovadoras de governo e administração, ligada ao ambiente criado pelas condições sociais,econômicas e políticas do terremoto de 1755 que obrigaria ao uso de técnicas, métodos econhecimentos que não tinham correlação com os conteúdos das práticas administrativastradicionais. Progressivamente, num tempo relativamente curto, começaram a criar uma sériede pequenas mudanças que acabariam por guiar as grandes reformas que ocorreriam a partirdos finais da década de 1750 e se impuseram na década de 1760.Não sendo criação de um autor, o futuro marquês de Pombal, a mudança foi, contudo,cunhada sob a sua liderança e apoiada numa rede de influentes políticos que se assenhorearamde uma multiplicidade de polos de poder tradicionais e dirigiram novas estruturas organizativasque adotaram o modelo da decisão unipessoal ou, no mínimo, de um pequeno conselhoadministrativo (juntas de administração).A caracterização dessa ruptura política tem várias dimensões e integra diversoscomponentes. Desde logo, é marcada pelo novo estilo de governo das secretarias de Estado,pela instrumentalização política dos tribunais e conselhos, pelas texturas das inovaçõesadministrativas, pelas diferenças introduzidas na taxinomia profissional e na alteração doestatuto do oficialato régio e pela permeabilidade jurídica e política provocada pelo arranqueda reforma da propriedade vinculada. Os novos métodos de decisão implantados durante asegunda metade do século ganharam, por esses motivos, a repercussão de um conflito degrande escala que culminará no atentado a D. José e que mudará a face dos poderes no final doAntigo Regime em Portugal.Ao contrário do governo “ministerial” do reinado de D. João V, durante o qual o ciclopolítico dos secretários de Estado coincidiu com os seus ciclos biológicos, não se operandoportanto qualquer remodelação política, no período pombalino ocorreram cinco remodelaçõesdepois do terremoto. Todas tiveram lugar depois de Sebastião José de Carvalho e Melo passara ocupar o lugar principal no governo (secretário de Estado dos Negócios do Reino). No anoseguinte ao cataclismo, aconteceram duas mudanças no governo, tendo a segunda cimentado onúcleo de confiança de Pombal com a demissão compulsiva de Diogo de Mendonça CorteReal. Na terceira remodelação (1760), o governo passou a contar com Francisco XavierMendonça Furtado, irmão de Pombal; e, na quarta (1770), será constituído o governo maisnumeroso, com cinco secretários de Estado, dos quais um era adjunto de Pombal (José deSeabra da Silva) e um outro continuou a desempenhar as funções de seu secretário adjunto(Ayres de Sá e Melo). O reforço de assessoria ao ministro do Reino e ao governo, bem como apromoção de secretários de Estado com fortes convicções reformistas próximos de Pombal,evidencia um sentido muito fortemente centralizado de comando político, de interaçãoconsistente entre Pombal e as suas criaturas e de determinação na concretização dos projetosde mudança. Não há rivalidades doutrinais profundas nem hostilidades de projetos; pelocontrário, verifica-se uma considerável homogeneidade de interesses estratégicos.Por outro lado, desde que assumiu o cargo de secretário de Estado do Reino, o futuromarquês de Pombal determinou que as consultas dos tribunais e dos conselhos passassem acorrer pela sua secretaria. Dito de outra forma, o despacho régio passava a ser observado,selecionado e organizado por ele próprio. O alcance político dessa medida está bem visível nomonopólio que passou a usufruir para influenciar a decisão do monarca ou para reter consultas(veto de gaveta), como prova o arquivo da Secretaria de Estado (ver José Subtil, ODesembargo do Paço [1750-1833], Lisboa, Ediual, 1996, capítulo III).Mas as secretarias de Estado pombalinas assumiram outras funções políticas de querealçamos a direção da nova administração intendencial e das juntas administrativas, comoteremos ocasião de referir, órgãos cujo modelo de decisão deixou de obedecer aos critériosjurisdicionalistas para ser fundado na vontade unipessoal dos secretários de Estado.A instrumentalização política dos tribunais e conselhos teve várias facetas. A primeira foi,sem dúvida, a alteração do sentido de voto dos membros das mesas através da nomeação denovos vogais afetos ao pombalismo. A segunda, mais melindrosa e sutil, consistiu naintromissão de desembargadores em determinadas mesas e tribunais, com os mesmos ou maisdireitos do que os de assento ordinário, sempre que houvesse necessidade de aprovar parecerescuja importância fosse vital para as reformas. Um expediente invulgar que se legitimava numanova interpretação dos benefícios auferidos pelos encartados com o título de “Conselheiro deSua Majestade”; ou seja, a rede desses “conselheiros” passava a constituir um grupo dedesembargadores que podiam transitar por todos os conselhos e tribunais, desde queconvocados para o efeito, sendo a antiguidade aferida pela carta de conselheiro, e não pelacarta de nomeação como membro da mesa ou do tribunal. Esse dispositivo permitia, assim,convocar desembargadores “estranhos” às mesas, vindos de outros tribunais, para discutirconsultas e votá-las, desequilibrando previsíveis votações contra o interesse das reformas ediminuindo, portanto, a tradicional autonomia jurisdicional desses órgãos.Mas a instrumentalização também se fez através da revalorização dos pareceres dosprocuradores da Coroa sobre as consultas produzidas pelos tribunais e conselhos régios. Essesfuncionários régios, por terem estado, no passado, obrigados a defender o interesse da Coroa,passaram, desde então, a desempenhar o papel de “tutores” do favorecimento do “interessepúblico”. A evidência das suas influências está patente na nova economia das decisões régias enas resistências e queixumes dos membros das mesas colegiais que se acharam ultrajados nasua dignidade pela presença de tais “olheiros” e “intrusos”, que, para além de confundir as suaspráticas, validavam comportamentos “monstruosos”.Essa governamentalização do aparelho administrativo tradicional foi completada com aexautoração das suas competências, quando muitas das funções foram transferidas para novosorganismos, criados e dependentes do governo dos secretários de Estado. Os exemplos maisemblemáticos são o Erário Régio (22 de dezembro de 1761) e a Intendência Geral da Política(25 de junho de 1760).A nova instituição financeira passou a centralizar as operações de tesouraria da Fazendareal e inaugurou uma nova contabilidade. Esse processo de centralização das finanças do Reinocontrariava as regras da gestão financeira que tinham comandado a atividade de governo, ouseja, a justiça e a graça, sob a responsabilidade do Conselho da Fazenda (António Hespanha,“A Fazenda”, História de Portugal, op. cit.). Os constrangimentos eram vários, desde alicitude dos tributos e das operações de crédito até a dispersão do controle orçamental econtabilístico. Uma nova política exigia um conjunto de requisitos, de técnicas e de recursosque não estava ao dispor instrumental e doutrinário do poder tradicional, particularmenteorigor da informação sobre receitas e despesas, a eficácia nas arrecadações dos impostos e oplanejamento orçamental.A Intendência Geral da Política passaria a interferir na esfera de atuação dos corregedores,provedores e juízes de fora, bem como no Senado da Câmara de Lisboa e com o Desembargodo Paço, em assuntos de “polícia” como o combate à criminalidade, incremento do fomentosocial e econômico, elaboração de censos de nascimentos, casamentos e óbitos para promovera demografia, o controle da saúde pública e do estado sanitário, a vigilância e a segurança domovimento de pessoas e bens, o recolhimento de mendigos, o combate à prostituição, isto é,em matérias ligadas ao bem-estar e à segurança das populações.A extensão da administração de tipo intendencial foi, porém, a maior novidade do período(José Subtil “Inspecteurs, Intendants et Surintendants”, Les figures de l’Administrateur, Paris,École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1997, pp. 135-149) e constitui um casoparadigmático da modernização da administração régia nas áreas de comércio, agricultura,obras públicas, fábricas, navegação, hospitais, provimento das tropas, contrabando, foros erendas. De referir, entre os mais importantes, os superintendentes-gerais das Alfândegas (1766)— um para o Norte e outro para o Sul —, o superintendente do Sal do Algarve (1765), oinspetor-geral para as Fábricas do Reino (1777), os superintendentes dos Lanifícios (1769), osuperintendente-geral da Décima (1798), o superintendente dos Contrabandos (1771), osuperintendente do Papel Selado (1797), o superintendente-geral dos Correios e das Estradas(1791), o superintendente dos Pinhais de Leiria (1783), o superintendente-geral das Minas eMetais (1802).A auto-organização e a fonte dos rendimentos dos oficiais régios perderam direitos eprivilégios que converteram a natureza das suas autonomias. Vingava uma nova interpretaçãosobre a adoção do caráter amovível e transitório do desempenho dos ofícios. A reformacomeçou com a definição dos estatutos remuneratórios, contra a ideia do ofício como fonte derendimento (patrimonialismo), na linha de um novo modelo de obediência, disciplina eavaliação do desempenho, ou seja, uma dependência disponível da vontade do príncipe edecorrente do mérito e do alinhamento político. E tudo isso coincidiu com a destruiçãoinesperada, provocada pelo terremoto de 1755, da grande maioria dos recursos humanos doaparelho administrativo e da exigência de práticas baseadas na racionalidade e na eficácia.O caráter excepcional do terremoto proporcionou também o ambiente para uma intervençãono domínio do direito da propriedade vinculada para “obrigar” o interesse dos particulares aadequar-se ao interesse público (José Subtil, O terremoto de 1755, impactos históricos, Lisboa,Livros Horizonte, 2007, pp. 209-224). Esse ciclo de desvinculação está ligado, entre outros, aodiploma de 12 de maio de 1758, que admitia o rateio de terrenos e prédios, independentementeda natureza jurídica, e permitia o expediente das adjudicações e anexações, antecipando adesamortização dos vínculos insignificantes (morgados, capelas e legados pios), aexpropriação e proibição da posse de bens de raiz por parte da Igreja e dos corpos de mãomorta e a concentração alodial (adjudicação e anexação de bens).E não foi tudo. Do mesmo modo se reformou a regulação dos testamentos, das heranças edoações, tanto para a sociedade civil como para a Igreja e corpos de mão morta; a décima e asisa, numa série impressionante de iniciativas legislativas, radicalmente inovadoras emarcadamente singulares (leis de 25 de junho de 1766, 23 de julho de 1766, 14 de outubro de1766, 4 de julho de 1768, 12 de maio de 1769, 9 de setembro de 1769, 23 de novembro de1770, 9 de julho de 1773, 14 de outubro de 1773, 1º de agosto de 1774 e 25 de janeiro de1775).A morte de D. José e o afastamento de Pombal do poder (1777) não limitaram nemimpediram o ritmo e a coerência do movimento reformista pombalino. As medidas tomadasdurante as três décadas que separam o final do reinado josefino e a entrada de Junot emPortugal (1777-1807) não interromperam o processo de mudança; ao invés, conformaram-seaos desígnios traçados e acordaram noutros que comungaram do turbilhão das rupturas.Durante os primeiros anos do marianismo, a Intendência Geral da Polícia foi dirigida porum reformista determinado, Diogo Inácio de Pina Manique (1780), que concretizou uma sériede medidas no campo da segurança, da saúde pública, do fomento agrícola, da prevençãocriminal, do ensino e da cultura. Seria criada uma das instituições mais concertadas com oespírito das “luzes”, a Real Academia de Ciências de Lisboa (1779); que, decorridos dez anos,iniciava a publicação das suas Memórias, com muita doutrina sobre a economia e, obviamente,críticas à propriedade vinculada. O desenvolvimento das artes, das ciências e o culto da Razãoestão na origem da criação de outras instituições de apoio e reforço às mudanças “iluminadas”,como a Academia do Nu, a Aula Pública de Debuxo e Desenho, a Aula Régia de Desenho, aReal Biblioteca Pública de Lisboa, o Museu de História Natural e a Real Casa Pia.A nova ordem política pedia naturalmente uma nova ordem constitucional assente nosprincípios orientadores da Lei da Boa Razão (1769) para substituir naturalmente oordenamento jurídico das Ordenações Filipinas. Era preciso partir quase do grau zero para umanova força e autoridade, concentrada na vontade do príncipe, mas moldada pela clareza daRazão. A tarefa ficou a cargo da Junta Ordinária da Revisão e Censura do Novo Código(1783), cujos trabalhos, parcialmente inéditos, são claramente inspirados por esse espíritoreformista, a que algum dos comissionados (António Ribeiro dos Santos) acrescenta já saboresde liberalismo político.Até a crise de 1786-1788, que iniciaria, de fato, a regência interina de D. João VI, nãosurgiu nenhum ministro antipombalino poderoso. Se o marquês de Angeja não teve qualquerpapel de relevo e desde cedo ficou afastado da vida política por motivos de saúde, o seusucessor, o visconde de Vila Nova de Cerveira, teve uma atuação semelhante, semrepercussões no sistema de governo. Depois da crise, o novo ministério, com José de Seabra daSilva, Luís Pinto de Sousa Coutinho e Martinho de Melo e Castro, era um governoautenticamente identificado com o pombalismo, podendo dizer-se o mesmo dos dirigentespolíticos das principais instituições administrativas.O resultado está patente na amplitude e dimensão das reformas que continuaram a serfeitas. Os poderes jurisdicionais dos donatários da Coroa foram drasticamente reduzidos (Cartade Lei de 19 de julho de 1790 e o Alvará de 7 de janeiro de 1792) com a abolição dasouvidorias, a isenção de correição e uma nova divisão do território a cargo de uma comissãoespecial nomeada por decreto de 8 de janeiro de 1793 (ver Ana Cristina Nogueira da Silva, Omodelo espacial do Estado moderno. Reorganização territorial em Portugal nos finais doAntigo Regime, Lisboa, Estampa, 1998).A reforma do sistema penitenciário começou a ser delineada de acordo com as maisavançadas doutrinas da época, todas de cunho utilitarista e visando à reforma não das almas,mas do corpo político. É esse o sentido da abolição da distinção entre pecado e delito,permitindo destrinçar os territórios da ação dos tribunais no quadro político e no quadroreligioso; bem como o da descriminalização de fatos do foro interno ou não prejudiciais davida social; assim como a proscrição de penas que, pelo seu excesso, antes provocassem acompaixão do que a antipatia pelos condenados. A comissão para a reforma legislativaapresentou (1789) o projeto de Pascoal José de Melo Freire sobre o direito público e o direitocriminal (ver António Manuel Hespanha, “O projeto de Código Criminal Português de 1786”,La Leopoldina, Milão, Giuffrè, 1988, v. II, pp. 1.631-1.642), em que os traços descritos estãopatentes.Foi ainda desencadeada uma ofensiva sem precedentes de expropriaçãothe contribution of theperifery”, cuja tese principal era que a contribuição da periferia para a formação do capitalismoinglês foi periférica, ao menos em termos de mercado consumidor, até o último quartel doséculo XVIII. Em outras palavras, a montagem da manufatura inglesa e a sua revoluçãoindustrial tiveram de se valer de seu consumo doméstico e do europeu para comprar suasmercadorias.27Na mesma linha de raciocínio, em 2010, Bartolomé Yun Casalilla lembra que a Américaespanhola, no século XVI, não estava preparada para demandar produtos europeus. Até finaisdo Quinhentos, por exemplo, o pagamento feito pelos indígenas no sistema de encomendas eraem produtos, entre eles os têxteis, elaborados nas comunidades locais. Por volta de 1590,quando o contrabando ainda não era uma realidade, as exportações espanholas para as Índiasde Castela equivaliam ao comércio da cidade de Córdoba da época.28 Por seu turno, muitomenos a Europa da época estava preparada, com uma estrutura manufatureira e comercial,para responder a uma possível demanda americana. Cabe registrar que a Espanha doQuinhentos tinha uma rede urbana e manufatureira compatível com a de outras sociedadeseuropeias do Quinhentos e do início do Seiscentos. Nesse instante, é bom lembrar que estamostratando de uma Europa ainda fundamentalmente camponesa, 95% da população do continentevivia no campo e de suas atividades. Em 1600, estima-se que somente onze cidades europeiaspossuíam mais de 100 mil habitantes, entre elas Lisboa e Sevilha.29 Quanto ao comércioeuropeu de então, era marcado pelo descenso das vendas de manufaturados e o crescimento deprodutos agrícolas.30 Considerando que os preços dos cereais seriam iguais a 100 no período1501-1510, no curso do século XVI os preços dos grãos, na Inglaterra, subiram para 425, nonorte dos Países Baixos, para 318, e na França, para 651.31 Na mesma época, os preços dosmanufaturados apenas dobraram. Por conseguinte, estamos diante de uma Europa sacudida porcrises de colheitas e com estrutura urbana-manufatureira sujeita aos caprichos de umaagricultura camponesa.Cabe destacar que, nesse contexto, segundo os números acima, a presença das populaçõesamericanas pouco contribuiu para reverter as dificuldades do mercado de manufaturados daEuropa. Caso a América tivesse aparecido como mercado para tais produtos, com certeza osseus preços cairiam ao invés de subirem. Ao menos nos séculos XVI e XVII, as populações doNovo Mundo não criaram uma demanda que resultasse na multiplicação das manufaturaseuropeias.Enfim, voltando a Bartolomé Yun, o século XVI e/ou o XVII ainda não era o XIX, em queo Império ultramarino aparecerá como apêndice da economia nacional. Só no Oitocentos ascolônias surgiram como mercado dos produtos metropolitanos e fonte de matérias-primas paraa metrópole.32 No Quinhentos e no Seiscentos, o Império ultramarino espanhol estava ligadonão a um Estado Nacional, mas a uma monarquia compósita, portanto de base corporativa epolissinodal, cujos preceitos vinham da escolástica. Isto tinha várias consequências nadinâmica do Império.Entre essas consequências, temos que o projeto espanhol para as conquistas, e acreditotambém que o português, era impelido por motivos que hoje chamamos de morais-religiosos,ou seja, a preocupação da monarquia era difundir o que eles entendiam por civilização cristãno Novo Mundo, e não tanto as práticas mercantilistas.Talvez, a partir desse novo quadro proposto por Casililla, se possa entender o porquê dediferentes segmentos sociais da América lusa, inclusive os forros, no Quinhentos e ainda noSetecentos, considerarem como obrigação deixar parte de seus patrimônios para o sustento deigrejas e irmandades. Na verdade, tais doações, feitas em testamentos, literalmente faziam asociedade americana ser organizada por vivos e mortos, ou, ainda, que a disciplina social semovesse também a partir dos mortos.33 Da mesma forma, a ideia de que a colonização ibéricaera movida mais por motivos morais — de uma sociedade católica — do que mercantis ajuda acompreender a preocupação dos conselhos palacianos e das elites locais das conquistas emocupar, povoar e defender as terras da América em nome de Sua Majestade, sendo isso feitopor engenhos de açúcar; pois eles garantiam a produção da riqueza necessária para aquelesfins. Por seu turno, as ideias mercantilistas só se difundiram principalmente no Setecentos.34Ao mesmo tempo, nunca é demais lembrar que a chamada “Revolução do Açúcar” deBarbados, de 1640, fora produzida por uma sociedade inglesa, cuja lógica social e econômicajá começava a se pautar em práticas de relações impessoais e do mercado livre.35Outra consequência do entendimento do Império como produto de uma monarquiapolissinodal e corporativa é que o ultramar será um espaço de serviços para a fidalguia edemais grupos sociais. Em outras palavras, o Império aparece como área de distribuição demercês, e, consequentemente, um espaço de negociações entre a Coroa e os diferentes corposda monarquia, de chances de mobilidade social numa sociedade estamental e portanto dereiteração do Antigo Regime.36Por seu turno, investigações ainda em curso, feitas por pesquisadores brasileiros eportugueses, tendem a confirmar algumas das suposições acima levantadas.37 Uma dashipóteses dessas investigações é a interação entre o reino e as suas conquistas em meio a umamonarquia pluricontinental lusa. Nesse sentido, a Coroa e a primeira nobreza lusa viviam derecursos oriundos não tanto dos camponeses, como em outras partes da Europa, mas doultramar, ou seja, das conquistas do reino. Tratava-se, portanto, de uma monarquia e umanobreza que tinham na periferia a sua centralidade.38 Da mesma forma, dissertações e tesestendem a demonstrar que a organização política do cotidiano e a percepção de mundo dosdiversos agentes coloniais — da nobreza principal da terra, dos comerciantes, dos forros e atédos escravos, entre outros grupos — passavam por valores vindos do Antigo Regime católico.Para tanto, basta lembrar a ideia de poder local como república, em que prevalecia oautogoverno, o de família como sociedade naturalmente organizada, a escravidão enquantoservidão civil e não natural.Outrossim, uma vez compreendendo que nos trópicos existiu também uma sociedade deAntigo Regime, isso implicava a reformulação do próprio conceito de Antigo Regime atéagora identificado, em termos de história social, com a nobreza de solar e massas camponesas.Um dos conceitos que está sendo fabricado (em construção) nos projetos e nos seminários,realizados pelo grupo de investigadores brasileiros e portugueses acima citado, é o demonarquia pluricontinental, inicialmente aventado por Nuno G. Monteiro e Mafalda Soares daCunha, como alternativa ao de monarquia compósita de J.H. Elliott.39 Afinal, se na época dosAustrias espanhóis de fato já existiam reinos, com as suas respectivas leis e costumes, algobem diferente ocorreu nas terras dos Aviz e depois nas dos Bragança. A monarquia lusaespalhava-se em diversos territórios, porém nela existia apenas um reino e várias conquistas.Parece-me que as elites locais, ao menos da América lusa, assim entendiam tal monarquia.Elas, refiro-me às nobrezas principais da terra, se compreendiam como parte de umamonarquia cuja corte localizava-se em Lisboa. Daí eles mandarem suas mulheres para osconventos reinóis e pedirem para serem rezadas missas por suas almas na mesma Lisboa,quando de seus falecimentos. Esse, por exemplo, foi o caso de Francisco Teles Barreto, comduas gerações no Rio de Janeiro, porém encomendou em testamento missas em Lisboa. Porémcabe insistir que nessas conquistas a administração desdobrava-se em repúblicas.Como afirmei, o conceito de monarquia pluricontinental está ainda em construção, comoaliás de resto a própria historiografia da América lusa dos seus três primeiros séculos e ahistoriografia da dinâmica imperial lusa. O grande passo dado nos últimos anos foi o de tomarconhecimentodos bens da Igreja edos corpos de mão morta (Lei de 9 de setembro de 1796 e Alvará de 23 de fevereiro de 1797;ver José Subtil, O Desembargo do Paço [1750-1833], Lisboa, Ediual, 1996, capítulo V).A “domesticação” racional e política do espaço levou à incorporação do CorreioMor — queandara alienado por uma doação senhorial — à Coroa (18 de janeiro de 1797) e ao início dasobras da estrada entre Lisboa e Coimbra e ao serviço de mala postal.De referir, ainda, a Junta do Exame do Estado Atual e Melhoramento Temporal das OrdensReligiosas (21 de novembro de 1789), a Junta da Diretoria Geral de Estudo e Escolas do Reino(17 de dezembro de 1794) e da fundação da Biblioteca Pública de Lisboa (27 de fevereiro de1796), sendo seu primeiro diretor um dos mais ilustres iluministas portugueses, AntónioRibeiro dos Santos. A criação da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegaçãodestes Reinos e Seus Domínios (1788), a Nova Arcádia (1790) e a publicação das Memóriaseconómicas da Academia das Ciências. Foi criada a Guarda Real da Polícia para intervir emvários domínios no governo da cidade de Lisboa e iniciada uma série de práticas inovadorassobre o modo de governar, como a dos censos populacionais, inquéritos, estatísticas denascimentos, mortes, casamentos e doenças, a construção de novos cemitérios por motivossanitários e prevenção da criminalidade.Alguns historiadores contemporâneos restringem, porém, o alcance dessas medidas e fazemleituras revisionistas do pombalismo durante o reinado de D. Maria. Os principais fatos quesustentam a ideia de uma “viradeira” têm sido a política das mercês e a revisão do processodos Távoras. Cremos que sem razão. O endividamento das grandes casas nobres está hoje bemconhecido, depois dos trabalhos de Nuno Monteiro (O crepúsculo dos grandes [1750-1832]. Acasa e o patrimônio da aristocracia em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,1998). Como os rendimentos não cobriam as despesas, os titulares das casas recorriam aempréstimos que, por não poderem pagar, aumentavam os encargos das dívidas e a insolvênciadas casas. Outras vezes era a própria Coroa a injetar aí capital, como aconteceu, por exemplo,com a Casa da Rainha. Em 19 de agosto de 1750, o monarca, atendendo às necessidades dacasa e às dificuldades financeiras, dotou-a com uma renda excepcional de oitenta contos deréis por ano, pagos pela Casa da Moeda à ordem do Conselho da Fazenda.Essa onda de endividamento, que não deixaria de crescer até a revolução liberal, começouno reinado de D. João V, mas agravou-se consideravelmente depois do terremoto de 1755 eganhou novos contornos com o atentado a D. José. Tal como noutros setores, a nova disciplinafinanceira pombalina iria intervir, de forma incisiva, nessa situação. Em primeiro lugar,multiplicando as nomeações de juízes administradores para as casas com o objetivo de impormenos gastos, controlar as execuções das dívidas, atribuir “mesadas” aos titulares e assegurarreservas para a reparação dos prédios e pagamento aos funcionários e criados das casas.Mesmo assim, os pedidos de moratórias para impedir as execuções dos credores e atribuiralimentos para a sustentação dos titulares, ou as suas prorrogações, eram cada vez mais. Assituações dramáticas de algumas casas, como a do marquês do Louriçal (1765), conde dosArcos (1762), marquês do Lavradio (1762) e marquês de Fronteira (1767), atestam oagravamento da situação depois da tentativa de regicídio. A partir dos finais da década de1750, a Coroa vai usar o arbítrio na atribuição de algumas mercês (em particular dascomendas) que tinham, desde a Restauração, estado concentradas nas principais casas. Mais demetade, 242, ficariam vagas. Para concretizar essa estratégia, Pombal usou expedientesburocráticos para atrasar os processos de renovação dos títulos e exigiu novas condições paraos encartes. Um dos principais credores, a Misericórdia de Lisboa, viu limitada a concessão denovos empréstimos às garantias de consignações (Alvará de 22 de junho de 1768), acabandomesmo por ser impedida de o fazer (Alvará de 31 de janeiro de 1775); ao mesmo tempo, foramabertos muitos processos judiciais para cobrar dívidas antigas, uma orientação política queseria, aliás, confirmada pelo marianismo (Decreto de 15 de janeiro de 1780).De referir, outra vez, o exemplo emblemático da Casa da Rainha. Após o atentado, oConselho da Fazenda e Estado da Rainha foi reforçado com ministros afetos às reformaspombalinas. O único tradicionalista que se manteve no cargo foi Manuel Gomes de Carvalho,secretário da rainha e chanceler da Casa, mas quem assumiu a presidência do Conselho (1760)foi Paulo de Carvalho e Mendonça, irmão do marquês de Pombal. Contudo, em 1766, o lugarde chanceler e secretário será ocupado por Simão da Fonseca Sequeira para, no ano seguinte,passar para Pedro Gonçalves Cordeiro Pereira, dois indefectíveis desembargadorespombalinos. Um pouco mais tarde (Decreto de 18 de janeiro de 1770) é o próprio conde deOeiras a ser nomeado pela rainha Mariana Vitória inspetor-geral das suas rendas para que oErário Régio se encarregasse das arrecadações das mesmas, controlasse as despesas esatisfizesse os pedidos dos encargos da casa.Não sendo muito referido pelos historiadores da “viradeira”, convém lembrar que no finaldo reinado de D. José, em 21 de janeiro de 1775, foi ordenado um tombo de todas as comendase o registro dos títulos para se proceder, então, aos encartes ou às arrematações das que semostrassem vagas. Sem dúvida que o grau e a extensão dos endividamentos, aliados agora aouso político do dispositivo da atribuição das mercês, enfraqueceriam de forma irreversível a“autonomia” dessas casas, fazendo-as depender exclusivamente da Coroa. E se quase todas(com relevo para as principais, duque de Lafões, marquês de Alorna, marquês de Valença,condes de Óbidos e Sabugal, S. Lourenço, S. Miguel, Vila Nova e viscondes de Asseca, entreoutras) se voltaram a encartar nessa mercê (comendas), no início do reinado de D. Maria I —restando saber em que medida esse movimento está relacionado com os tombos decretados(menos de dois anos antes) —, o certo é que, como nos diz Nuno Monteiro, a casa dosGrandes, entre 1750 e 1833, tinha os bens consignados ao pagamento das dívidas, recebiaalimentos fixos e em alguns casos nem sequer renda tinha para consumir. Uma situação quealinhava com uma outra: durante o pombalismo, os governos deixaram de ser dominados pelosgrandes antigos, mesmo depois da “viradeira”, ou seja, a “liderança das facções político-curiaiscabia a outros que não os grandes antigos” (p. 544). Nessas circunstâncias, não é possíveldescortinar nenhum sinal de “viradeira” que fundamente o regresso dos grandes à política.A revisão do “processo dos Távoras” foi, por sua vez, uma reparação cirúrgica ao grupoaristocrático, o saneamento do estigma de um crime de “lesa majestade”, inconcebível para asconfigurações do pathos nobiliárquico e que corroía o prestígio de um grupo de que a realezasimbolicamente ainda tirava partido, pelo que o seu desdouro não podia continuar a circularsem restrições. O processo, aliás, não foi acompanhado por nenhum pronunciamento, ao jeitode uma fronda, ou sequer de um “assalto” ao poder pelas famílias reconciliadas ou por parentespróximos, de sangue ou de doutrina; além de que outras casas nobres que acompanharam oprocesso de reformas do pombalismo e participaram dele não viram as suas imagensapoucadas, nem foram espoliadas, exiladas ou excluídas do poder.Finalmente, ao terminar o século XVIII, D. João VI assumiria, de direito, a regência emnome da sua mãe (15 de julho de 1799) e nomearia um novo governo durante a conjuntura daGuerra das Laranjas (6 de janeiro de 1801), governo que teve como novidade a ascensãopolítica dos Coutinho (Luís Pinto de Sousa Coutinho como secretário de Estado do Reino e D.Rodrigo de Sousa Coutinho como secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros).Mas, agora, o eixo da luta políticase deslocaria para as relações internacionais, fraturando ogoverno entre partidários da França e da Inglaterra, o que obrigou a alargar o campo da decisãopolítica com a reativação do Conselho de Estado, cujas últimas reuniões tinham ocorrido porcausa do atentado a D. José e a sentença à morte dos nobres acusados de implicação (1760).Nessa altura, para além dos secretários de Estado com assento por inerência no Conselho,foram nomeados cinco novos conselheiros; mas, passada a gravidade da situação, acabariampor morrer sem ser substituídos. Agora, com a crise internacional desenhada depois daassinatura do tratado de Basileia (1795), D. João VI nomeava 12 novos conselheiros em 4 dejulho de 1796.O panorama sobre o Império não é propriamente o mesmo. As condições logísticas aodispor do poder central, quer no Reino quer nas colônias, as limitações da comunicaçãopolítica, as baixas taxas de regresso ao Reino dos agentes indigitados para o Brasil, asdificuldades e os desinteresses das nomeações para a África e para o Oriente, a vigilânciaprecária dos seus desempenhos, fizeram com que os mecanismos e os instrumentos de açãopolítica se tivessem exercido de forma parcial e indeterminada e que a lógica do controle dosespaços se tornasse pouco visível, mais sindicável do que interventiva, recheada de conflitospermanentes entre os vários agentes, conflitos resolvidos, na maior parte dos casos, pelospróprios intervenientes, reforçando, desse modo, as suas autonomias singulares.A atomização política e a periferização administrativa são os signos dominantes do sistemade poderes no Império português durante o Antigo Regime. Sem uma estrutura régiacentralizada, o território ultramarino ficou sujeito a um pluralismo político, que, por razõesparcialmente idênticas, parcialmente diversas, vigorou tanto nas colônias como no Reino. Ospoderes coloniais se terão exercido, sobretudo, de acordo com as lógicas dos interesses locais eobedecendo, em pequena escala, às estratégias políticas comandadas do Reino ou dos governoscentrais.Fizeram também parte desses jogos políticos os cálculos de interesse das instituições doReino e das colônias e dos vários oficiais régios, como atestam, por exemplo, os frequentesconflitos decorrentes das autonomias jurisdicionais dos ouvidores, travados a montante com osgovernadores e a jusante com as autoridades municipais e locais. Por outro lado, as leituraspolíticas dos regimentos atribuídos a cada nomeado implicavam determinações exclusivas parao exercício dos cargos de cada um, estando longe, portanto, de corresponder a uma definiçãofuncional, consistente e homogênea dos cargos, independentemente de quem os ocupava; oscargos estavam, por isso, abertos a pessoalismos, por vezes oportunistas, a veleidades edesmesuras, em oposição à coerência exigida de um governo e de uma administraçãosuficientemente racionais, metódicos e eficazes.Os poderes no Reino também não atenuaram essa descentralidade regional, na medida emque os assuntos do Império eram analisados separadamente, conforme as respectivas áreas decompetência, pelo Conselho Ultramarino, Conselho da Fazenda, Conselho da Guerra, Mesa daConsciência e Ordens e o Desembargo do Paço, sem que a Secretaria de Estado da Marinha eNegócios Ultramarinos, ou o próprio Conselho Ultramarino, tenha assegurado minimamenteum centro de coordenação e de autoridade. Os conflitos de jurisdição no Reino eram tambémfrequentes, o que atrasava a tomada de decisões, enublava outras e permitia que os poderescoloniais tirassem partido da situação ou seguissem a via de capitalizar os contatos que tinhamno Reino, na procura de influências para as suas causas.Por outro lado, a análise do trajeto das carreiras dos principais responsáveis políticos nãoevidencia qualquer projeto integrado na funcionalidade do sistema político colonial nemsalvaguarda a independência dos cargos em relação aos mais variados estímulos coloniais. Noque respeita, por exemplo, à elite político-administrativa, podemos dizer que, desde o períodojosefino até a revolução liberal, a taxa de retorno dos desembargadores foi de cerca de apenas25%; ou mesmo menos, se tivermos em conta os providos como aposentados. Ou seja, apenasum em cada quatro desembargadores opta por se desligar do mundo colonial, voltando para ostribunais superiores do Reino.Ainda mais reveladores são os dados referentes aos ministros de segunda linha. Entre 1772e 1826, das 1.774 nomeações para juízes de fora, corregedores, ouvidores e provedores, pertode ¼ tiveram o destino do Ultramar, do qual regressaram ao Reino somente 7% dos providos.Dos restantes 93%, mais de 60% continuaram como funcionários régios nas colônias e umterço mudou de profissão (José Subtil, “Os ministros do rei no poder local, ilhas e ultramar[1772-1826]”, Penélope, nº 27, 2002, pp. 37-58).Esses indicadores apontam para uma forte emigração de elites letradas para as colônias,especialmente para o Brasil, que terão constituído as suas redes locais de influência e reforçadoas lógicas de autonomia. E mesmo os que voltaram para fazer carreira na Relação do Porto, naCasa da Suplicação, no Desembargo do Paço ou nas mesas dos tribunais e conselhos régiosformaram um conjunto de altos dirigentes que desenvolveram políticas para influenciar osterritórios coloniais onde exerceram o poder, servindo-se das relações que deixaram no terrenoou mandando os filhos e outros dependentes aconselhados a repetir as suas experiências. Poroutras palavras, os quadros judiciais letrados — nos quais se funda, na Metrópole e noUltramar, o mito da centralização régia — são majoritariamente absorvidos pelos localismoscoloniais.Apesar de tudo, foram organizados alguns polos de poder que pretenderam assegurar acentralidade da figura régia, repetindo os mesmos esquemas utilizados no Reino. Foi o caso,no final do século XVI, da criação de um tribunal superior para o Brasil (1587), a Relação doEstado do Brasil, com sede na cidade de S. Salvador da Bahia e que entrou em funcionamentoem 1609. Na mesma altura seria criado um governador-geral para o Sul do Brasil e umouvidor-geral do Sul. Mas, por pressão dos donatários que perdiam autoridade sobre os seusouvidores, o tribunal acabou por ser extinto (1626), sendo substituído por três ouvidoriasgerais (Maranhão, Brasil e Repartição do Sul), independentes entre si mas subordinadas à Casada Suplicação. Ou seja, uma estrutura administrativa dependente da metrópole comindependência em relação ao governador-geral. O tribunal seria novamente restabelecido(1652) com jurisdição sobre os ouvidores-gerais, exceto o do Maranhão, e só no final doséculo XVII chegou a S. Salvador o primeiro juiz de fora para a colônia.Em 1751, na altura da chefia da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e daGuerra por Sebastião José de Carvalho e Melo, seria estabelecida a Relação do Rio de Janeiroe no auge das reformas pombalinas foram criadas as Juntas de Justiça (1765-1766), formadaspelo ouvidor da comarca e por dois adjuntos letrados para desempenhar o papel de tribunais desegunda instância no que respeita às sentenças dos juízes ordinários; isto é, uma lógicajurisdicional decalcada do Reino, mas a acusar dificuldades na fixação do poder de correiçãono ouvidor, visto passar a ser assumido por um órgão colegiado.No que respeita a Angola, o primeiro regimento destinado ao ouvidor é de 2 de fevereiro de1609, praticamente igual ao de 23 de junho de 1651, e levantará muitos problemasjurisdicionais na relação com os governadores-gerais, mesmo no período de governadores maisdeterminados, como foi o caso de Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho. Já no final doAntigo Regime, no ano de 1804, os recursos em pessoal administrativo dessa colônia,distribuídos pela Secretaria do Governo, Junta da Fazenda, Tesouraria, alfândegas, oficiais dejustiça e da câmara, somavam 83 oficiais, entre os quais se contavam apenas quatro letradospara uma população recenseada de 5.712 habitantes,em que os brancos representavam menosde 10%, os pretos perto de 75% e os pardos 15%. Ao longo do século XVIII, as queixas dosgovernadores sobre o estado caótico dos arquivos é recorrente, como o da custódia dosdocumentos se fazer nos domicílios dos escrivães (Maria Soares, A administração de Angolano século XVIII, Lisboa, FCSH, 2003).O pior ainda se passa com Cabo Verde, praticamente sem nenhuma estrutura de governo. Oarticulado do primeiro regimento do ouvidor (20 de junho de 1606) atribui-lhe jurisdiçãoidêntica aos corregedores do Reino; mas acrescenta-lhe competências nos domínios daapelação e agravo, criando-lhe autossuficiência em relação ao governador.Se esses e outros regimentos nada têm de inovador, visto reproduzirem — de uma formageral — o quadro legislativo do Reino, levantaram muitos problemas na ligação com asrealidades locais e regionais. Desde logo, a ausência de condições culturais e sociais para assuas aplicações e, depois, a concorrência com os costumes e tradições locais (vícios dogentilismo, costumes diabólicos e bárbaros e sujeições sem obediência).A exceção a tudo isso foi o Brasil quando a Corte se transferiu para o Rio de Janeiro(1808), assistindo-se, desde então, à montagem de uma réplica da estrutura política do Reino.A esse propósito, comentava o embaixador português em Londres, D. Domingos de SousaCoutinho, que “poder-se-hia dizer que Portugal se tornou uma possessão ultramarina emrelação ao reino do Brazil”, tal foi a mudança que se operou do ponto de vista político eadministrativo e que foi, em grande parte, a causa da integridade do território depois daindependência.Se do Brasil passarmos para o Oriente, o cenário geral não é diferente. De umaadministração muito complacente com as idiossincrasias locais do governo e do direito —menos, porventura, na Índia, apesar de tudo um lugar simbólico do mando dos reis de Portugal;mas de forma extrema em Macau, por exemplo, uma autêntica república dos mercadores(fortemente crioulizados) locais — passa-se, no período pombalino e ulterior, para tentativas,frequentemente ineficazes, de centralização (síntese em A.M. Hespanha [em colaboração comCatarina Madeira Santos], “Le forme di potere di un impero oceanico”, em R. Zorzi (ed.),L’epopea delle scoperte, Firenze, Olshki, 1994, pp. 449-478, antecipando o respectivocapítulo, escrito pelos mesmos, para o IV v. [“O Antigo Regime”] da História de Portugal, J.Mattoso (dir.); para Macau, A.M. Hespanha, Panorama da história institucional e jurídica deMacau, Macau, Fundação Macau, 1995).BibliografiaANNINO, Antonio & GUERRA, François-Xavier (coords.). Inventando la nación. Iberoamérica: siglo XIX.México: Fondo de Cultura Económica, 2003 (v. recensão de Eduardo Scheidt em História Unisinos,9(2):148-150, maio/agosto 2005(http://www.unisinos.br/publicacoes_cientificas/images/stories/sumario_historia/vol9n9/res01_scheidt.pdf).BETHENCOURT, Francisco & CURTO, Diogo Ramada (eds.). Portuguese Oceanic Expansion, 1400?-1800.Cambridge: Cambridge University Press, 2007.BUESCU, Ana Isabel. Imagens do Príncipe. Discurso normativo e representação (1525-1549). Lisboa:Cosmos, 1996.CHIARAMONTE, José Carlos (org.). 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Poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVIII.Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 2008.Notas* Professor titular de História Constitucional e do Direito da Faculdade de Direito da Universidade Nova deLisboa.** Professor da Universidade Autônoma de Lisboa.*** [que pode ser acessado em http://oll.libertyfund.org/index.php?option=com_staticxt&staticfile=show.php%3Fperson=4181&Itemid=27, 1915]1. Javier Pérez Royo, Introducción a la Teoria del Estado, Barcelona, Blume, 1980. Últimas obras gerais sobreo tema: Jean-Frédéric Schaub, “La crise hispanique de 1640. Le modèle des ‘revolutions peripheriques’ enquestion (note critique)”, Annales. E. S. C., v. XLIX:1(1994), p. 219-239; Jean-Frédéric Schaub, “La penisolaiberica nei secoli XVI e XVII: la questione dello Stato”, Studi storici. 36, 1995, 9-49; Angela de Benedicits,Politica, governo e istituzioni nell’Europa moderna, Bologna, Il Mulino, 2001; Jean-Frédéric Schaub, LePortugal au temps du conte-duc d’Olivares (1621-40), Madri, Casa de Velásquez, 2001; Xavier Gil Pujol,Tiempo de política. Perspectivas historiográficas sobre la Europa moderna, Universitat de Barcelona,Barcelona, 2006; Aurelio Musi, L’Europa moderna fra Imperi e Stati, Milão, Guerini Associati, 2006(revalorizando o centralismo “estatal”); Pablo Fernandez Albaladejo, Materia de Espana. Cultura politica eidentidad en la Espana moderna, Madri, Marcial Pons Historia, 2007.CAPÍTULO 4 Os indígenas na fundação da colônia: uma abordagem críticaJoão Pacheco de Oliveira*Introdução metodológicaMuitas vezes e até num passado recente as investigações sobre as relações entre os europeus eas populações autóctones na América portuguesa assumiram o aspecto de uma confrontaçãoabstrata entre uma população primitiva e homogênea e colonizadores europeus do início dorenascimento. Ou seja, entre pessoas portadoras de culturas localizadas em etapas muitodistantes da história da humanidade. Um encontro portanto altamente improvável e ilógico, noqual o estudioso vem a adotar (sem disso ter qualquer consciência) uma perspectiva unilaterale etnocêntrica, como herdeiro (natural e feliz) de uma das partes. Está instaurado o cenárioideal para um exercício lúdico de produção de sentido, que se respalda no senso comum e nassuas reelaborações eruditas.É essa tomada de partido (implícita, não consciente) da narrativa que irá determinar asperguntas, os temas e problemas que passam a dirigir a utilização das fontes e a leitura dosdocumentos da época. Transformado em mero exemplo da justaposição de duas humanidadesantagônicas e distantes, o encontro passa a ter um caráter apenas episódico e paradoxal: busca-se a ineficiência das tecnologias e dos sistemas econômicos indígenas, a fragilidade de suasestruturas políticas e o aspecto bizarro de seus costumes. Tudo estimula a enfatizar o exotismoe a transitoriedade. Temas como a inadaptação dos nativos ao trabalho e a sua acelerada — epresumidamente inexorável — desaparição impõem-se como naturais, prescindindo de examee explicitação, assim como o seu corolário mais direto: a necessidade de uma força de trabalhoque viesse a substituir os indígenas.O encontro em si mesmo, descrito como algo acidental e fortuito, é visto quase com ironia enon sense dentro de uma narrativa mais abrangente, supostamente inexorável e de sentidounívoco, da expansão do mundo europeu. Tudo concorre para deixar claro a condição efêmeradaquele encontro e a pequena importância dos indígenas na conformação do mundo colonialque irá se instaurar no futuro território da nação brasileira.O artigo a seguir adota outros pressupostos e caminha na contracorrente das leituras acimacriticadas. Toma a noção do encontro colonial1 como uma categoria analítica central para aprodução de um conhecimento crítico sobre o social. Para operar com esse instrumentoconceitual há que partir de um quadro histórico preciso, no qual as formas e unidadessocietárias são engendradas por atores premidos por estruturas assimétricas de poder e porprocessos mais amplos, motivados todos por concepções (diferencialmente distribuídas) deuma dada época. É preciso que o investigador se esforce por reconstruir, como um concreto depensamento, a densidade das relações sociais e compreender a sua tessitura enquanto fatocontemporâneo. Longe de ser o palco para um teatro do absurdo, o encontro colonial é o lócusonde se atualizam todas as práticas e representações, é ali que se instituem as relações sociais,produzindo simultaneamente o colonizador e o colonizado.2O século XVI não deve ser pensado a partir das reelaborações do século XVII nem do papelhegemônico assumido pelas teorias raciais e princípios evolucionistas hegemônicos no séculoXIX. A contemporaneidade das relações sociais pode ser resgatada através da recuperaçãoanalítica de quadros interativos concretos, atualizados por meio de situações sociais ehistóricas.3O analista nunca se deve limitar a descrever as situações exclusivamente a partir de umúnico prisma, mas sim procurar incorporar os interesses, as lógicas e os valores de atoressociais subalternos.4 À diferença de uma narrativa abstrata e analítica, remetendo a umahistória interpretativa, o texto a seguir procura reapresentar os eventos de que participaram osindígenas, retirando as populações autóctones de um lugar secundário no que concerne àconfiguração do encontro colonial.5 Pelo menos no que concerne ao século XVI, o problemanão é tanto a inexistência de informações, mas sim o modo superficial e quase anedótico comque foram tratadas as populações autóctones, atribuindo-lhes (naquela época) característicasque são de hoje ou incorporando estereótipos que não eram contemporâneos aos fatos descritose que provêm de contextos históricos posteriores.Por fim, uma dimensão comparativa é fundamental para escapar à enorme força das versõeseuropeizantes do fenômeno colonizatório e autorrepresentações ocidentais da história.6 Acolonização portuguesa no Brasil não foi aqui abordada como resultante de um modelo apriori, mas como algo que se vai definindo progressivamente, a partir de opções contrastantescom espanhóis e franceses, que vão gerando doutrinas e práticas divergentes. Além de buscaruma compreensão específica do século XVI, a análise pode identificar certas formas econfigurações sociais que irão ter efeitos organizativos em contextos posteriores, tema a quevoltaremos ao final do texto.A ocupação pré-histórica do BrasilEmbora haja um relativo consenso quanto à origem asiática das populações encontradas peloseuropeus na América no final do século XV, existem diferentes teorias sobre a antiguidadedessa ocupação e as rotas percorridas. A hipótese mais amplamente aceita enfatiza a viaterrestre. Em algumas fases no decurso da última glaciação, o mar chegaria a estar 100 metrosabaixo de seu nível atual, propiciando o aparecimento de uma faixa de terra entre a Ásia e oextremo norte da América por onde teriam passado bandos de caçadores em busca de umafauna pleistocênica,7 rica fornecedora de carnes e peles. A expansão da presença humana nocontinente se daria no sentido norte-sul e deveria ser anterior ao fim da glaciação,ocorrido há12 mil anos. Existem no entanto outras hipóteses sobre migrações marítimas, similares àsocorridas no povoamento do Japão e da Austrália (respectivamente há cerca de 60 mil e 50 milanos), que conduziriam diretamente à América do Sul através de alguns arquipélagos. Quantoà antiguidade da presença humana, enquanto na academia norte-americana predomina oregistro dos 12 mil anos,8 baseado nos estudos sobre o complexo arqueológico de Clóvis(Novo México/EUA), estudos realizados no sítio da Pedra Furada (São RaimundoNonato/Piauí) pela arqueóloga Niéde Guidon indicariam vestígios de ocupação humana hácerca de 60 mil anos.9Se no passado todas essas hipóteses eram vistas como mutuamente excludentes, hoje háuma tendência a operar criticamente com elas,10 considerando a existência de migraçõessecundárias, raciocinando com base em diferentes levas de povoadores11 e recuando a dataçãoda presença humana, ao menos no Brasil, para antes dos 12 mil anos.12 Bandos de caçadorespaleoíndios, na busca de ambientes úmidos e campos de caça da megafauna, se fixaram emcavernas da região de Lagoa Santa (Minas Gerais) já ao redor de 16 mil anos AP. SegundoProus, a presença humana, antes bastante rarefeita, em torno de 9 mil anos AP já se distribuíacom generalidade pelo território brasileiro.13 A ocupação da faixa litorânea está atestada pelosachados de inúmeros sambaquis, sobretudo na região entre o Rio de Janeiro e o Rio Grande doSul, alguns de grandes proporções, cuja datação remonta principalmente a entre 5 mil e 2 milanos AP.14Ainda hoje continua a ser uma referência para os antropólogos a classificação proposta porJulian Steward no famoso Handbook of South American Indians (5 volumes, editados entre1946 e 1949).15 Baseado sobretudo na observação dos reflexos de diferenças ambientais nasestruturas sociais, ele delineia quatro tipos. O primeiro é o das “terras altas” (Andes), ondefloresceram sociedades centralizadas e extremamente complexas, com um sistema econômicodiferenciado e abrangendo vastas extensões territoriais, possuindo instituições políticasespecializadas, que permitiam estabelecer paralelos com Impérios da antiguidade (Egito,Pérsia, Roma) e com processos de formação de estruturas estatais em curso na Europa doperíodo dos descobrimentos. Na classificação das terras baixas, no entanto, explicitava-se apostura teleológica do autor. Assim Steward falava de “cacicados”, sociedades que selocalizariam nas ilhas e no litoral do Caribe, atingindo também o extremo norte da costa doPacífico; de culturas “de floresta tropical”, que se espalhavam pela região amazônica, ao longode toda a costa atlântica (até o Uruguai) e no litoral sul do Pacífico (do Peru ao Chile); e detribos “marginais”, que ocupariam as savanas do Brasil Central, o Chaco, o cone sul docontinente (Uruguai e Argentina) e algumas pequenas áreas dentro das florestas tropicais.Sem chegar a configurar processos de centralização característicos da formação de Estados,os cacicados possuíam uma razoável complexidade social, com uma certa diferenciação entregrupos constitutivos (“classes”), com chefes locais e algumas formas de articulação (político-ritual) entre aldeias. As culturas da floresta tropical praticavam uma agricultura de coivara esabiam explorar os recursos aquáticos, possuíam aldeias e a sua organização social estavaassentada no parentesco e no xamanismo (anotava-se, porém, a ausência de instituiçõespropriamente políticas ou religiosas). As tribos marginais, por sua vez, possuíam a organizaçãosocial mais simples, viveriam sobretudo da coleta e da caça e seriam compostas por pequenosbandos. Na escala demográfica, enquanto os cacicados podiam ter aldeias que excediam um oupoucos milhares de moradores, as unidades sociais mínimas das culturas de floresta tropicaltinham algumas centenas de integrantes, enquanto as tribos marginais viviam em bandos compoucas dezenas de componentes.O grande mérito da classificação de Steward para as investigações históricas é evidenciar aenorme diferenciação existente entre as populações autóctones já ao tempo das descobertas,permitindo-nos uma leitura mais rica da “literatura de testemunho” representada peloscronistas e viajantes do século XVI. Muitos intérpretes posteriores procederam asimplificações, formulando generalizações nem sempre bem fundamentadas e, implícita ouexplicitamente, fornecendo um paradigma único para as populações autóctones.Mesmo as fontes da época não dão conta de tal diversidade. As crônicas sobre o Peru falamde uma sociedade centralizada que se expande estabelecendo um esquema de vassalagem sobresociedades menores e pouco desenvolvidas. Os diários de Colombo, assim como as veementesdenúncias de Las Casas, tratam principalmente dos tainos e de outros povos karibes, queconstituíam cacicados, tinham aldeias com um ou dois milhares de pessoas e seus chefesusavam adornos de ouro. Os viajantes das costas e dos sertões do Brasil descrevem aspopulações autóctones de menor ordem de complexidade, respectivamente as sociedades dafloresta tropical e as tribos marginais. De certa forma, cada narrador tem o seu modelo deindígena, fortemente articulado com as diferentes propostas de colonização que ali serãoimplantadas.Ao estabelecer uma classificação com base na menor complexidade social e, portanto, nodistanciamento progressivo face ao universo andino, os antropólogos de fato não inovaram emtermos de categorias cognitivas. Apenas traduziram em seus próprios termos os registrosideologicamente carregados feitos por cronistas e viajantes dos séculos XVI e XVII, que viamas instituições nativas através dos interesses da colonização e como um espelho da Europadessa época.A diferença entre as instituições políticas e sociais das terras altas e das terras baixas daAmérica do Sul já aparecia, aliás, nos primeiros esforços de sistematização de uma história doBrasil, ainda no século XIX. Varnhagen manifestava apreço pelas culturas andinas, enquantoparalelamente criticava o primitivismo dos indígenas que habitavam o território brasileiro, cujacontribuição à construção da nação seria de pequena relevância. Para esses últimos nãoexistiria história, mas apenas etnografia.16A distinção entre indígenas da floresta tropical e tribos marginais de certa forma reproduz aclivagem entre tupis e tapuias que irá marcar grande parte da produção historiográfica até oprimeiro quartel do século XX. Ao colocar as diferenças culturais em termos de estágiosevolutivos, o discurso científico veio ao encontro de categorias que foram essenciais para oexercício das políticas coloniais no Brasil, o evolucionismo cultural do século XXfuncionando, tal como o evolucionismo vitoriano, justaposto à ideologia colonial.Repensando a diversidade culturalAs pesquisas arqueológicas e etnológicas das últimas décadas mostraram os limites daclassificação de Steward e apontaram algumas inconsistências e paradoxos no uso de taiscategorias, evidenciando que o espaço brasileiro não foi de modo algum objeto de umaocupação pré-histórica simples e rudimentar.As análises de Anna Roosevelt esboçaram um panorama da pré-história da Amazôniabastante novo, no qual os assentamentos humanos eram contínuos e permanentes,comportando milhares a dezenas de milhares de indivíduos. As economias dos cacicadosestabelecidos nas várzeas ao longo do rio Amazonas e de seus principais afluentes(...) eram complexas e de larga escala, englobando a produção intensiva de plantas de raiz e de sementesem campos de poli ou monocultura, a caça e pesca intensiva, o amplo processamento de alimentos e aarmazenagem por longos períodos. Havia investimentos consideráveis em estruturas substanciais epermanentes ligados à produção, tais como viveiros de tartarugas, represas com pesca, campos agrícolaspermanentes, entre outras. A agricultura baseava-se mais na limpeza dos terrenos e nas culturas anuais doque na derrubada e queimada, o principal método utilizado hoje em dia.(Anna Roosevelt, 1992, p. 72)Embora o nascimento de sociedades similares nos Andes tenha precedido de cerca de ummilênio a esses cacicados, há fortes indícios de que tais desenvolvimentos sejam de origemlocal. As suas manifestações artísticas, por exemplo, são “próprias da Amazônia, e não dasáreas montanhosas”.17 A autora alerta ainda para a pressuposição de que o padrão etnográficoatual seja representativo do padrão antigo, erro em que costumam incidir algunsantropólogos.18Os padrões etnográficos da subsistência indígena de cultivo itinerante, a caça e a pesca parecem, assim,representar um retorno a um modo de vida que existia na Amazônia antes do desenvolvimento daseconomias intensivas dos populosos cacicados. (Anna Roosevelt, 1992, p. 77)A necessidade de uma revisão não se limita à várzea, mas atinge igualmente outras partes daregião amazônica e as chamadas tribos marginais. Na região do Alto Xingu, muito distante dasvárzeas, num típico habitat de terra firme onde deveriam existir apenas populações pequenas edispersas, o arqueólogo Michael Heckenberger encontrou estruturas defensivas e grandesaldeias (de 20 a 50 hectares) datadas do século XIV d.C. Ou seja, em termos populacionaisalgumas aldeias xinguanas do século XV deveriam ser quase dez vezes maiores do que asatuais (que possuem entre 100 e 400 membros), a área como um todo abrigando umapopulação de algumas dezenas de milhares de pessoas.19 Possivelmente a região do Alto Xingunão constitui um caso único, devendo encontrar-se situações de alta concentração populacionalem outros sistemas multiétnicos e multilinguísticos.Nas savanas e nos cerrados do Brasil Central, onde habitariam as tribos marginais, osarqueólogos apontam que a horticultura pode ter sido praticada antes mesmo do aparecimentoda cerâmica (algo em torno de 500 a.C.). Noticiam também a presença de aldeias circulares datradição aratu com uma dimensão média de 7 hectares, datadas de 800 a 1.500 d.C. Existematualmente para mais de 150 sítios arqueológicos com assentamentos anelares nos cerrados doBrasil Central. Ou seja, no momento da conquista a região era habitada por uma populaçãomuito mais numerosa, com aldeias de dimensões muito superiores às atuais, abrigando entre800 e 2.000 pessoas.20Tais dados sobre a pré-história da região são mais concordes com o relato que os etnólogosrealizaram desde o final da década de 1920 sobre os povos de língua jê, com as investigaçõespioneiras de Curt Nimuendaju e Claude Lévi-Strauss, seguidas por David Maybury-Lewis,Julio Cezar Melatti, Roberto da Matta, Terence Turner, Renata Viertler, Lux Vidal, AracyLopes da Silva, entre outros. Como resultado desses trabalhos, os povos jês deixaram de serdescritos como caçadores nômades, para ser compreendidos como sociedades estruturadas porsistemas de metades cerimoniais, por grupos etários e segmentos residenciais, combinandoperíodos de dispersão com outros de reunião em grandes aldeias.21 Para manter seu plenofuncionamento institucional, uma tal estrutura não apenas possibilitava abrigar uma populaçãonumerosa como também a exigia e essa foi uma condição severamente afetada nos séculosXIX e XX pelo ingresso e pela fixação de não indígenas em terras habitadas por esses povos.A dimensão demográficaApós haver lidado com material arqueológico e etnológico é importante partir para a leitura dedados demográficos. Os números disponíveis são muito díspares e torna-se indispensável vê-los com bastante cuidado e integrados àquelas outras bases de dados. Em trabalhoanteriormente referido, Steward (1949) avaliou em cerca de 1,5 milhão a população nativa doBrasil em 1500. A mais modesta estimativa, porém, foi realizada por Rosenblat, que, em 1954,a estimou em 1 milhão de pessoas.22 É muito importante lembrar, aliás, que esse montantecorrespondia às estimativas realizadas por Varnhagen23 em seu monumental esforço de comporuma história do Brasil.Existem, porém, indicações sobre a precariedade dos números fornecidos,24 que contrastamcom os que serão apresentados duas décadas depois por W. Denevan,25 em uma obra que setornou referência obrigatória sobre o tema. Sua estimativa foi de 3,6 milhões de habitantes paraa Amazônia e um milhão para a população indígena do litoral. Atualmente os números maisaceitos26 são os do historiador John Hemming, que tomou por base tanto as fontesquinhentistas e seiscentistas quanto criou índices de densidade populacional consoante afertilidade e potencialidade de 28 nichos ecológicos em que dividiu o território brasileiro.27 Poressa estimativa, a população autóctone do Brasil em 1500 totalizaria 2,4 milhões de pessoas.É útil enquadrar os dados referentes ao Brasil nas estimativas referentes à América eEuropa. Enquanto Rosenblat mencionava para a América o total de 13,8 milhões, umhistoriador dedicado a estudos do Peru, Nathan Wachtel,28 avaliou que somente ali essapopulação no momento da conquista chegaria a cerca de 10 milhões. Na década de 1960, osnúmeros apresentados tiveram uma certa convergência, mas eram inteiramente discrepantesdos de Rosenblat: Borah,29 em 1964, falava em 100 milhões; Dobyns,30 em 1966, estimavaentre 90 e 112,5 milhões; e Pierre Chaunu,31 em 1969, ficava entre 80 e 100 milhões. Nadécada seguinte, os cálculos de Denevan reduziram um pouco esses números, vindo a fixar apopulação nativa das Américas em 57,3 milhões. Esse mesmo autor citava cálculos de Borah,segundo os quais a população europeia da época — do Mediterrâneo aos montes Urais —estaria entre 60 a 80 milhões.Torna-se bastante claro que entre colonizadores e colonizados existiu uma mesma ordem degrandeza demográfica. Um levantamento ordenado por D. Manuel I já ao final do século XV(1498) apontou que Portugal possuía pouco mais de 1,4 milhão de habitantes. De acordo comos dados de Hemming, a população do Brasil seria nesse momento quase o dobro daquela dePortugal. Um especialista32 estimou que em 1570 a população indígena fosse da ordem de 800mil, ou seja, estava reduzida a um terço de seu volume demográfico no início do século XVI.Em função dessa violenta redução populacional, o termo descoberta tem sido evitado pormuitos estudiosos contemporâneos,33 que falam em “conquista” (Hemming, 1978; Todorov,198334) ou mesmo “holocausto” (Marcílio, 2000).À diferença da cena delineada pelo século XIX, no qual foram lançados os alicerces de umahistoriografia do Brasil, a população autóctone desse território no século XVI não podia sercaracterizada como primitiva e rudimentar, nem era uma população dispersa e rarefeita,inteiramente distinta dos colonizadores ou das altas culturas dos Andes. O espaço geográficoda colônia não era de maneira alguma um vazio demográfico, seus primeiros habitantes viviamem configurações socioculturais bem diferenciadas e estabeleceram vínculos distintos com oprocesso de colonização, no qual foram peças essenciais.A exploração do pau-brasilAs primeiras viagens de Colombo às ilhas do Caribe e à América Central revelaram já umimediato potencial econômico para as terras recém-descobertas, com a perspectiva de obtençãode grandes carregamentos de ouro e prata. Os espanhóis trataram de apropriar-se de riquezasque estavam sob controle direto das populações autóctones. Isso requeria que desde cedo elesadentrassem pelo interior à caça de tesouros, jazidas ou simplesmente de objetos (em uso pelosindígenas) de extraordinário valor mercantil. Tanto para tais expedições quanto para oestabelecimento de fortificações e cidadelas de apoio era exigida uma extensa mão de obraindígena. Era a busca de riquezas que conduzia ao domínio dos nativos e ao controle dojuca9Destacarterritório. A Espanha substituía as campanhas militares contra os mouros pela expansão emterras da América, pois em 1492 era celebrada igualmente a queda de Granada e a descobertada América.Portugal já estava com suas fronteiras definidas desde 1249, possuindo já no começo doséculo XV uma classe de comerciantes emancipadados controles feudais e bastante forte nascidades de Lisboa e Porto.35 A colonização portuguesa das ilhas do Atlântico e o ciclo dasgrandes navegações constituiriam na realidade um “expansionismo preemptivo”,36 com apassagem do Cabo da Boa Esperança, a descoberta do caminho marítimo para as Índias (1498)e o “achamento” do Brasil.A experiência portuguesa na América foi muito diversa da espanhola. Alusões a metaispreciosos não se confirmaram ao longo de quase dois séculos. O objetivo que movia acolonização portuguesa no século XVI “não eram terras, mas o Império sobre o comérciomarítimo”.37 A conquista de territórios, que foi um segundo momento na Índia e também noBrasil,38 era apenas um meio de assegurar a supremacia marítima, assim como metaispreciosos poderiam vir a ser um facilitador.Logo na primeira expedição de reconhecimento, comandada por Gonçalo Coelho em 1501,a riqueza da nova terra foi identificada como o pau-brasil, árvore que possuía um similarasiático e da qual se extraía a tintura para a indústria de tecidos. Era encontrado comabundância em todo o litoral, mas ao invés de transportá-lo in natura melhor seria preparar amadeira antes de embarcá-la. Toda a produção dependeria de uma relação amistosa com osindígenas, não apenas para assegurar a troca, mas sobretudo para o abate das árvores (na escaladesejada) e o seu aparelhamento, o que exigia a incorporação pelos nativos de instrumentos demetal e novas técnicas de trabalho. As autoridades coloniais (feitores, governadores, capitães)deveriam ter um bom relacionamento com os indígenas e os “lançados” (degredados,desertores ou náufragos) desempenhariam importante papel.Mas os portugueses logo tiveram concorrentes. Em 1504, aportou no Brasil a expedição deBinot Paulmier de Gonneville, que se dirigia ao Oriente, mas aqui permaneceu por váriosmeses no litoral de Santa Catarina. No retorno, foi atacada por piratas e só um pequeno grupode tripulantes conseguiu escapar, chegando em maio de 1505 ao porto de Honfleur, naNormandia. Entre os sobreviventes estava Essomeric, filho do cacique carijó Arosca. Osrelatos dos tripulantes sobre as gentes e os produtos da nova terra logo despertaram o interessede homens de negócio da Normandia e da Bretanha, preocupados em abastecer de corantes oscentros gauleses de produção de tecidos. Os armadores de Rouen, Dieppe, Harfleur, Honfleur eCaen, na Normandia, e de Brest e Saint-Malo, na Bretanha, começaram a enviar, cada vez commais frequência, navios para obter o pau-brasil não mais em Lisboa, mas diretamente na Terrade Santa Cruz.39 Aos poucos, foi surgindo uma categoria de intermediários, os chamadosjuca9Destacarjuca9Destacarjuca9Destacarjuca9Destacarjuca9Destacarjuca9Destacartruchements, que se fixavam junto a alguns grupos locais tupis, aprendiam a língua e passavama atuar como agenciadores do beneficiamento do pau-brasil para os barcos franceses.Inicialmente, o modelo de colonização seguido foi o privado. Em 1502, D. Manuel Iarrendou a Terra de Santa Cruz a uma associação de mercadores encabeçada por Fernão deLoronha.40 A política portuguesa para o Brasil não se prendia, porém, a um modelo único,variou de acordo com as circunstâncias e, sobretudo, com as ameaças de franceses e espanhóisà sua supremacia. Após a expedição de Paulmier de Gonneville à Coroa, tentando ampliar asiniciativas comerciais na colônia, passou a autorizar o livre acesso dos mercadores àquelasterras, mediante o pagamento do quinto. Paralelamente, D. Manuel I investiu CristóvãoJacques no comando de uma esquadra (1516-1519) cuja missão era patrulhar a costa eestabelecer um núcleo de colonos.41Em 1530, uma esquadra, comandada por Martim Afonso de Souza, chegava com afinalidade de apresar as naus francesas encontradas na Costa do Pau-Brasil (i.e, entre a Paraíbae o Rio de Janeiro), assentar padrões em lugares importantes da Costa do Ouro (entre Cananeiae o rio da Prata) e fundar povoações litorâneas. Para se ter uma ideia da intensidade dapresença francesa vale detalhar aqui os fatos ocorridos no curso de alguns meses. Logo quandode sua chegada (janeiro/fevereiro de 1531), no espaço de uma semana, Martim Afonsolocalizou e capturou três navios franceses no litoral de Pernambuco, bem providos de canhõese grande carga de pau-brasil. Em março, o galeão La Pèlerine, com 18 canhões e 120 homens,que saíra do porto de Marseille (pois foi um empreendimento do barão de Saint-Blancard, enão mais de armadores da Normandia), arrasou totalmente a feitoria de Igarassu (que já forasaqueada em dezembro por um barco francês) e construiu um novo entreposto fortificado noterritório dos índios caetés, seus aliados, retornando com grande carregamento.42 Ao passarpelas costas de Pernambuco, de regresso a Portugal, em maio do ano seguinte, Pero Lopes deSousa detetou dois navios franceses (um afundado, outro capturado) e destruiu a guarniçãofrancesa em terra, enforcando o comandante e mais 20 homens. De retorno a Portugal,acompanhado de “quatro reys da terra do Brasil”, foi recebido por D. João III, que ordenou queos nativos fossem bem tratados e vestidos de seda.43No que toca ao povoamento, a expedição de Martim Afonso de Sousa apresentou umresultado bastante modesto. A povoação de São Vicente (1532) foi viabilizada em função delaços familiares de dois “lançados”, João Ramalho e Antonio Rodrigues, genros de caciquestupiniquins, respectivamente, Tibiriçá e Piquerobi.44 Grave foi a ocorrência do primeiroenfrentamento com os autóctones, resultado de uma “bandeira” que se dirigiu ao sertão embusca de ouro e prata. Toda a expedição, com 400 escravos índios e 80 soldados, foi aniquiladapelos carijós no rio Iguape. Nos anos seguintes, foi movida uma guerra punitiva contra oscarijós dessa região.45juca9Destacarjuca9Destacarjuca9Destacarjuca9DestacarÉ importante registrar tal conflito por ser o primeiro claro sinal de antagonismo entre oscolonizadores portugueses e as populações autóctones. Cabe notar que tal fato ocorreujustamente em uma tentativa de Portugal de imprimir um novo ponto de inflexão a sua políticana América do Sul, deixando de priorizar unicamente o comércio do pau-brasil, mas tambémtomando como meta criar núcleos de povoamento e disputar com os espanhóis as riquezas doImpério Inca. A penetração dos espanhóis pelo interior do continente, que já implicara adestruição de expedições anteriores (como a esquadra de Dias de Solis, no rio da Prata, em1515), irá se consolidar justamente nessa década, com a fundação de Lima (1535), BuenosAires (1536), Assunción (1537), Santiago (1541) e a descoberta das minas de Potosí (1546).Apesar do fracasso dessa primeira “bandeira” portuguesa, a colonização na capitania de SãoVicente, à diferença das demais, iria manter-se sempre voltada para a busca de minerais epedras preciosas, secundada pela captura e pelo comércio de escravos indígenas.Do malogro do povoamento à guerra de conquistaA criação de 12 capitanias, hereditárias e indivisíveis, com cerca de 50 léguas de costa, ocorreuentre 1534 e 1536. Cabia aos capitães o poder, entre outros, de nomear quase todos os oficiais(ouvidor, meirinho, escrivães); criar e empossar os conselhos; vetar os juízes ordinários edecidir sobre o estabelecimento de povoações. Cabe destacar dois outros poderes aqui: o deaplicar a pena de morte e talhamento de membro aos peões, índios e escravos; e o de concederterras em regime de sesmaria a pessoas de todas as condições.46 Embora Couto fale em um“modelo de exclusividade particular”,47 é importante notar que a Coroa reservou para si anomeação dos oficiais ligados à arrecadação de tributos, o monopólio do pau-brasil, o dízimodo pescado e o quinto da pedraria e dos metais. O donatário inclusive recebia uma pensãoanual do rei, o que parece configurar com mais propriedade um modelo de colonização misto,que conjuga ações particulares com um controle estatal (efetivo, ainda que limitado).Os resultados apresentados emmais de uma década de aplicação desse modelo eram bemlimitados. Foram estabelecidas algumas povoações ao longo do litoral, iniciando os colonos apartir delas os primeiros trabalhos na lavoura. Ao fim desse período, a relação das povoaçõesportuguesas na Costa do Pau-Brasil era bem reduzida: Igarassu (refundada junto a antigafeitoria real), Olinda (fundada por Duarte Coelho em 1535 em território dos caetés), Ilhéus,Porto Seguro, Santa Cruz (hoje Cabrália), Vitória (Espírito Santo), São Vicente (reedificadaem outro local) e Santos (cujo fundador, Brás Cubas, lugar-tenente do donatário, lhe atribuiuem 1546 o estatuto de vila).juca9Destacarjuca9DestacarA maioria dessas povoações encontrava-se com frequência sitiada por indígenas hostis esem condições de expandir (ou até manter) o núcleo inicial. Na Bahia de Todos os Santos odonatário, após a edificação de uma vila em 1536 e dos progressos iniciais, entrou em atritocom os tupinambás e veio a morrer, juntamente com a maioria de seus colaboradores, duranteos conflitos que se sucederam. Ilhéus e Porto Seguro também tiveram um início promissor.Mas já em 1540, em Ilhéus, ocorreu um levantamento geral dos tupinambás contra osportugueses. Em Vitória, desentendimentos posteriores com os tupiniquins, que inicialmenteacolheram bem os portugueses, levaram a frequentes cercos da povoação.48 Em 1546, existiamna capitania 300 vizinhos (cerca de 1.600 portugueses), operando três engenhos de cana.49 Empouco mais de duas décadas os conflitos com os indígenas fizeram com que essa população sereduzisse em um terço e apenas um dos engenhos continuasse funcionando.50 Em 1646, apósconflito com os indígenas, o donatário da capitania de São Tomé (na área em torno da foz dorio Paraíba do Sul), que chegara a montar dois engenhos,51 decidiu retornar a Portugal.52 Em1647, os índios tupinambás atacavam a capitania de Santo Amaro.53A fragilidade da ocupação portuguesa estimulava a ação dos franceses. Os moradorescomeçaram a invocar auxílio da Coroa não só contra os indígenas, mas também com relaçãoaos franceses. Com D. João III, Portugal já havia redefinido a sua política colonial, centrandoos seus interesses no Atlântico Sul e no fortalecimento da rota para as Índias. Era evidente aprecariedade da presença lusitana no Brasil, fortemente limitada pelos conflitos com osindígenas e a competição comercial com os franceses. Foi delineada, então, para a colônia umaestrutura governativa mais centralizada, capaz de intervir nos conflitos locais e diretamentesubordinada à Coroa.À diferença das Índias, onde a presença portuguesa era descontínua e convivia cominstituições bastante heterogêneas, o objetivo básico no Brasil passou a ser o controleterritorial, criando uma unidade entre núcleos dispersos e vulneráveis e implantandosolidamente as suas próprias instituições políticas. O que El Rey tinha em mira era estabelecera plena e total submissão da população autóctone, fazendo a guerra aos que não aceitavam odomínio português e retirando aos franceses qualquer respaldo para as suas iniciativas noBrasil. A argumentação deve também ser invertida, pois sem a exclusão de aliados externos(no caso os franceses) se tornaria muito difícil impor ao numeroso gentio a submissão aoscolonizadores.É possível visualizar com nitidez essa mudança no Regimento de 17/12/1548, formuladopara o primeiro governador-geral, Tomé de Souza. Tratava-se de fortalecer o poder defensivodos núcleos já existentes, com a fortificação das vilas e povoações. Os próprios engenhos efazendas deviam ser dotados de estruturas defensivas, como torres e casas-fortes. Todos osmoradores que possuíssem casa, terras ou embarcações deveriam dispor de armamentopróprio. Era rigorosamente interditada a venda aos “gentios” de qualquer tipo de armajuca9Destacarjuca9Destacarjuca9Destacarjuca9Destacarjuca9Destacardefensiva ou ofensiva (arcabuzes, espingardas, pólvora e munição, bestas, lanças, espadas oupunhais). Para a penetração aos sertões através dos rios foi autorizada a construção à custa daFazenda Real de embarcações a remo dotadas de peças de artilharia.54O Regimento recomendava que se favorecessem os índios aliados, proibindo sob pena deaçoite (ou multa no caso dos que tivessem um estatuto diferenciado) que os moradores fossemnas aldeias para recrutar trabalhadores ou para comerciar sem autorização expressa dogovernador. Coibindo os abusos, o que a Coroa pretendia era desestimular novoslevantamentos e revoltas por parte dos indígenas. El Rey falava também sobre a importânciada conversão ao catolicismo da população nativa, para isso seguindo na comitiva dogovernador seis jesuítas, coordenados pelo padre Manoel da Nóbrega. Contudo, para os que seopusessem ao domínio português — que eram enquadrados no crime de “traição” — oRegimento prescrevia um tratamento muito duro. Os tupinambás inclusive eram diretamentecitados, recomendando El Rey ao governador que todos aqueles que se voltassem contra osportugueses fossem “castigados com muito rigor (...) destruindo-lhes suas aldeias e povoaçõese matando e cativando aquela parte deles que vos parecer que basta para seu castigo eexemplo”. De certo modo, já estava delineada a figura da “guerra justa” que mais tarde seriamais bem definida por diferentes leis, como iremos ver adiante. Aos corsários aprisionados nascostas brasileiras deveriam ser também aplicadas punições severas, que os dissuadissemplenamente de voltar.A doutrina da “guerra justa”Seguindo as pegadas do trabalho clássico de Perdigão Malheiro,55 a maioria das abordagens dotema da escravidão indígena sublinha o caráter contraditório das intervenções da Coroa. Apartir da qualificação do conflito de posturas e interesses entre os missionários (especialmentejesuítas) e os moradores, as reconstruções históricas passam a identificar as iniciativas domonarca como expressando respectivamente motivações humanitárias ou utilitárias, numreflexo quase direto de performances ativadas por dois grupos sociais muito distintos, umvoltado para o mundo das ideias e dos valores religiosos, outro diretamente relacionado àsatividades materiais e aos interesses puramente locais. Os conflitos entre jesuítas e moradoressão tomados como fenômenos homogêneos e transistóricos, algumas vezes interpretados apartir do cenário da política pombalina (meados do século XVIII), ou então exclusivamente defontes consagradas, como o padre Antonio Vieira (que viveu e escreveu no século XVII).juca9Destacarjuca9Destacarjuca9DestacarAlém de reforçar tais leituras, as análises dos autores indigenistas tendem a traduzir taloposição em termos de proteção X extermínio, um par ideológico solidamente estabelecido nasinterpretações do século XX, e nas pretensas explicações sobre a origem do Serviço deProteção aos Índios. Não devemos, porém, incorrer na falácia do presentismo (buscando ler asrealidades do passado em termos das categorias ideológicas do presente), nem proceder demaneira formalista, sem tentar relacionar os textos e as ideias com as práticas que lhes eramcontemporâneas. Os confrontos ocorridos no século XVI não são uma antecipação doantagonismo entre os positivistas e o cientista teuto-brasileiro Rodolfo Van Ihering, nem entreo maranhense João Francisco Lisboa e o historiador Francisco Adolfo Varnhagen (também deorigem alemã). Não se podem confundir debates de ordem intelectual com contradições cujodinamismo engendra ações e políticas sociais.A legislação colonial portuguesa sobre a escravidão dos índios está assentada sobre certaspremissas básicas, mas se atualiza no tempo, possibilitando variações e disputas, cujodesdobramento está correlacionado com conjunturas políticas concretas. Se essas categoriasjurídicas continuam a ter efeitos durante séculos, isso não significa nem que as formas queassumem sejam estritamente idênticas nem que as suas repercussões sociais sejam análogas. Odesdobramento lógico e as transformações que propicianão excluem, nem poderiam realizar-se sem exegeses pontuais, históricas e parciais — isto é, sem consciência e vontade dos atoresconcretos, sem disputas e negociações. Atribuir-lhes um sentido único, homogeneizando asdiferentes conjunturas que alimentam a política colonial ao longo de três séculos, seriaprender-se excessivamente à retórica que integra os textos legais, sem atentar para adelimitação de benefícios e encargos que tais categorias realizam entre distintos grupos sociais.É essa leitura sociológica e processualista — e não essencialista e estática — que iremosproceder a seguir, buscando compreender como o desdobramento dessas categorias no tempoestá ligado a contextos locais precisos.A noção de “guerra justa” tem origens muito anteriores ao “achamento” do Brasil,remontando à reconquista da Península Ibérica e às lutas entre “cristãos” e “infiéis” (mouros).No século XIV, o franciscano Álvaro Pais a conceituava pela conjunção de três fatores: aexistência precedente de uma grande injustiça, que a guerra fosse conduzida com intençõespuras e que fosse declarada por uma autoridade competente.56 Tratava-se, portanto, de umamodalidade de cruzada ou “guerra santa” — e não apenas na visão dos seus executores diretos,mas também dos teólogos, humanistas, juristas e administradores!Na primeira metade do século XVI há notícias de que indígenas foram escravizados elevados para Portugal sem qualquer conexão explícita com os princípios acima citados. Osnativos eram trocados como mercadoria ou capturados (enquanto adversários de índiosaliados). Entre as mercadorias levadas, em 1511, pela nau Bretoa, pertencente a umaassociação de comerciantes dirigida por Fernão de Loronha, contavam-se 35 escravos. Algunsjuca9Destacarjuca9Destacarjuca9Destacarjuca9Destacarjuca9Destacaranos depois (1514), registrou-se que a coberta de uma embarcação que se reabasteceu nas ilhasda Madeira estava repleta de escravos. Entre as regalias dos donatários contava-se a remessaanual de entre 24 a 48 escravos isentos de taxação.57 Nas terras do Brasil, tomar índios como“cativos” era uma prática frequente, que ocorria tanto por terra, com as “tropas de resgate”,quanto por via marítima e fluvial, através dos “saltos” (embarcações destinadas aoapresamento de indígenas). A categoria “índios de corda” apareceu como uma primeiratentativa de legitimar tal situação, alegando tratar-se de índios que eram prisioneiros de outrosíndios e que, caso não fossem resgatados, seriam sacrificados.O Regimento de Tomé de Souza, peça-chave para a instituição do primeiro governo centralno Brasil, estava, contudo, formulado em outros termos, claramente referido à tradição jurídicaibérica, na qual os inimigos estavam classificados em dois tipos: os que aceitavam a conversãoe se submetiam aos soberanos católicos, dos quais passavam a ser súditos; e os que persistiamna condição de “infiéis” e deveriam ser combatidos, mortos ou escravizados.Ao chegar à Bahia, o padre Nóbrega ficou impressionado com a generalidade do costumeentre os moradores de possuir nativos como escravos. Isso afrontava a bula papal Veritas Ipsa,promulgada por Paulo III, em 1537, que afirmava que as populações autóctones da Américapossuíam alma e que não deveriam ser objeto de maus-tratos ou escravização. Havia que dar àconquista um fundamento religioso para que essa se adaptasse aos parâmetros de uma “guerrajusta”. Tratava-se de produzir uma verdadeira conversão do gentio, exercendo sobre ele “osuave jugo de Cristo”, estipulando como condições inaceitáveis à catequese a continuidade deatuação dos pajés, da poligamia e da antropofagia.A comoção trazida pela morte infligida ao bispo Pero Fernandes Sardinha e outrasautoridades, vítimas de um naufrágio em território dos caetés, foi um estímulo às rígidasnormas fixadas por Nóbrega e aprovadas pelo terceiro governador-geral, Mem de Sá, em 1558.Enquanto anteriormente as guerras contra os autóctones terminavam com o juramento delealdade a El Rey e com o pagamento de tributos, a partir desse momento seriam impostasigualmente condições religiosas. A ideia da guerra justa exigia não somente o castigo aosinfiéis, mas também a reconstrução daqueles que teriam se submetido. A atuação doscolonizadores não deveria restringir-se à dimensão política ou econômica, mas para justificar-se precisava salientar o seu aspecto ético e espiritual.58 No ano seguinte, em uma cerimônia emAbrantes (BA), Nóbrega batizaria 436 indígenas tupinambás.59Consensos e disputas no cativeiro dos índiosjuca9DestacarA maioria das interpretações sobre a política colonial tende a enfatizar exclusivamente aoposição entre jesuítas e moradores. Mas isso resulta de operar com atores sociais comosimples joguetes de princípios abstratos e de interesses materiais, sem analisá-los eminterações concretas, isto é, agindo em situação.60 As decisões que El Rey toma em relação àvida na colônia não devem ser pensadas como resultantes nem de uma postura arbitrária eimpositiva nem de distanciamento ou desinteresse. As posições adotadas refletem, aocontrário, um fluxo permanente de informações que lhe são levadas por administradores econselheiros, em grande parte devendo ser explicadas por mudanças em conjunturas locais. Aadministração colonial portuguesa operava dentro de esquemas bem menos centralizadores,ora estimulando acordos e negociações locais ora ordenando que tais decisões fossemrespeitadas e cumpridas.61Na realidade, os missionários, moradores e administradores estavam inseridos numa densateia de relações de interdependência. O padre Nóbrega em várias ocasiões viajou junto com osgovernadores em suas visitas às capitanias, participando das negociações com os indígenas eacompanhando campanhas militares. Os mais influentes catequistas do século XVI, Nóbrega eAnchieta, expressaram em diversas cartas sua crença de que a “guerra justa” contribuíaefetivamente para a conversão do gentio.Os administradores, além de dever seguir os cânones de uma dada tradição jurídica, viviamem um contexto cultural profundamente marcado pelo catolicismo. A fé era um componenteimportante nas batalhas e ações militares, constantemente celebradas por missas de ação degraças, por santos patronos e pela sistemática atribuição do nome desses às povoações recém-criadas. No que toca aos moradores, para ser considerados “homens bons” deviam seguirregularmente os ofícios religiosos, praticando a confissão e escutando os sermões (nãodevemos esquecer que a Inquisição estava ativa em Portugal e no final do período faria a suaprimeira visita ao Brasil). Por outro lado, mesmo no aspecto econômico os moradores nãodeixavam de ver como útil a atuação pedagógica dos missionários junto aos indígenas, poismelhor os habilitava ao trabalho, até mesmo os preadores de índios preferiam o gentioproveniente das missões, aos quais era dado um valor maior do que os “bravos” ou os recém-descidos.Os jesuítas, por sua vez, para desenvolver sua atividade missionária dependiam largamentedos governadores e capitães-mores, dos conselhos municipais e dos moradores, tanto para aconcessão de sesmarias (onde eram assentadas as aldeias, os colégios e as igrejas) quanto paraa doação de esmolas, favores e escravos negros (para trabalhos agrícolas mais intensos). Emseu relacionamento com a população autóctone, fosse para a formação de alianças ou amobilização de trabalhadores, os governadores igualmente dependiam tanto de moradores maisantigos (os “lançados” e seus descendentes) quanto dos missionários e mesmo deaventureiros.62juca9Destacarjuca9Destacarjuca9DestacarO momento mais importante para a especificação dos princípios da legislação colonialrelativa à escravidão indígena ocorreu com a convocação da Junta de 1566, posteriormenteretificada com uma segunda Junta realizada em 1574. Ao final dos debates da primeira, ficouestabelecido que os nativos que vivessem nas aldeias criadas pelos jesuítas eram livres e nãopodiamser escravizados, tornando-se “forros” aqueles que haviam sido indevidamenteescravizados. Por outro lado, os jesuítas asseguravam aos colonos a possibilidade de utilizaçãodo trabalho temporário dos índios em suas fazendas, mediante o pagamento de salários.Recomendava-se também a criação do cargo de procurador, a ser exercido por uma pessoailibada e que não tivesse interesses envolvidos no assunto.63Tais normas foram homologadas por El Rey através da Carta Régia de 20/3/1570 epassaram a regular as relações com os indígenas na colônia. Todos os atos consecutivos — ascartas régias de 24/2/1587, de 11/11/1595, de 30/7/1609 e 10/9/1611 — não alteraram osconsensos estabelecidos. Embora os títulos que lhes foram dados (pelos contemporâneos oupor gerações posteriores) sempre enfatizassem a liberdade dos indígenas, elas tratavamextensamente da “guerra justa” e estipulavam minuciosamente as condições legais do“cativeiro”.A lei de 1570 colocou a “guerra justa” como o instrumento básico para o cativeiro legítimode índios, explicitando que a sua declaração deveria ocorrer exclusivamente por ato do rei oudo governador. O diploma legal já incluía nessa categoria os aimorés. Indo além dasrecomendações da Junta de 1566, a Carta Régia proibiu a aquisição dos “índios de corda”, oque provocou protestos dos moradores e a convocação, em 1674, de uma nova junta, quereformulou essa interdição. A Coroa não estava distanciada das questões da administraçãolocal, mas de modo consistente reiterava e detalhava orientações anteriores. Assim ocorreucom o alvará de 20/11/1575, que determinava que os índios que trabalhassem nas fazendasfossem pagos logo e pudessem retornar às aldeias. Mais adiante, a Coroa prescrevia que aosgentios descidos do sertão fossem destinadas terras para as suas aldeias nas proximidades dasfazendas e que durante 15 anos ficassem isentos do pagamento de impostos (alvarás de21/8/1587). Em outras ocasiões, a Coroa reafirmava que apenas as “guerras justas” autorizadaspelo rei ou pelo governador é que podiam ser consideradas legítimas, não aquelas que fosseminiciativas exclusivas de moradores ou conselhos. Mais tarde, a Carta Régia de 1595 restringiuainda mais esse poder, limitando-o à autoridade do rei.64Os dispositivos legais não acabavam com as diferenças de perspectiva, apenas fixavamconsensos e estabeleciam espaços de disputa. Embora taticamente tivesse optado por assegurara liberdade aos índios que estavam nas aldeias, o padre Nóbrega em suas cartas considerava acompra de cativos um ato ilegítimo. A demanda por trabalho indígena nas fazendas e nosengenhos deveria ser atendida primordialmente através dos índios livres, mediante opagamento de salários e condições que não desestruturassem a economia das aldeias nemjuca9Destacarinviabilizassem a catequese. Embora a proposta pudesse lembrar um mercado capitalista detrabalho, esse não era o caso. O indígena tinha as suas condições de reprodução fora da órbitado mercado e estava em uma condição tutelada, o seu salário sendo pago ao administrador daaldeia e apenas uma pequena parte a ele mesmo e em espécie. Um estudioso pondera que háindícios de que a situação dos índios das aldeias fosse até pior do que a dos escravos.65 Dequalquer modo, como iremos ver a seguir, a insatisfação dos indígenas, seja por razõesestritamente econômicas ou mais amplas e culturais, traduzia-se em um grande número defugas.A obtenção de escravos via o “resgate” dos chamados “índios de corda” instituía ummecanismo de compra e venda66 de cativos no qual os moradores e os próprios indígenasestavam envolvidos.67 O valor de um “índio de corda” era atribuído pelo governador, com basenos custos da expedição de resgate, sendo o seu período de trabalho compulsório fixado demaneira a permitir a amortização do investimento. Em termos lógicos, a condição de cativo eraapenas temporária, a Carta Régia de 1611 chegando a defini-la em dez anos (mas, a dependerdos valores atribuídos, tal período poderia ser estendido sem a possibilidade de contestação). Afuga era punida com severidade. A disputa instalava-se quanto à condução dos descimentos, àadministração das aldeias e ao cargo de procurador dos “índios forros”. A preocupação dedestacar a ação colonial como um empreendimento religioso levou a determinar que osdescimentos devessem ser acompanhados obrigatoriamente por missionários. Nas cartas régiasde 1587 e 1595 era especificado que exclusivamente os jesuítas poderiam desempenhar talfunção.Já ao início do século XVII uma outra conjuntura parece delinear-se. Na carta régia de 1611estava indicada a possibilidade de que a presença de representantes régios (missionários) nosdescimentos pudesse tanto ser satisfeita com missionários quanto com administradoresseculares das aldeias. Isso não deve ser interpretado como uma perda de poder dos religiososna política, mas sim como sinal de uma redistribuição de papéis possibilitada pelo RealPadroado. O sistema de uso do trabalho remunerado de índios forros funcionava com muitaprecariedade, havendo bastante dificuldade tanto para receber os pagamentos quanto para opronto retorno dos indígenas às aldeias. Os atritos com os moradores, que faziam igualmenteuso de escravos indígenas (via a aquisição de “índios de corda”), eram cotidianos e a demandasobre o trabalho indígena só tendia a crescer. A documentação revela que ao longo do séculoXVII as requisições de índios forros para trabalho em engenhos de açúcar, salinas, minas desalitre, obras públicas (fortificações e caminhos), como remeiros, em apoio a expediçõesmilitares, tornavam-se cada vez mais frequentes.A resposta dos indígenas à deterioração de sua condição de vida nas aldeias era através defugas, o que concorria também para aumentar a ineficiência e inviabilidade do sistema. Umaalternativa para os missionários era buscar as regiões do sertão, visando ao estabelecimento dasjuca9Destacaraldeias em pontos mais afastados das pressões da economia colonial, já instalada na faixalitorânea. Enquanto os missionários passaram a deslocar-se crescentemente para o sertão e paraa Amazônia, articulados a um movimento de expansão territorial e de incorporação de novaspopulações autóctones, os administradores laicos e mesmo os moradores irão cada vez maisocupando esses cargos.Na realidade, há necessidade de novas investigações para que possamos determinar melhorcomo se relacionavam os mercados de “forros” e “cativos”. Os estudos existentes centram-seexclusivamente na legislação, sem mostrar como as normas se traduziam em práticas. Umadistinção rígida entre essas duas esferas transacionais pode ser questionada por registros feitosnas décadas seguintes, que apontam claramente uma confluência entre essas diferentescondições jurídicas, bem como para uma enorme permissividade e conivência das autoridadesquanto à não aplicação das normas relativas ao uso do trabalho indígena:Com certos enganos e com algumas dádivas de roupas e ferramentas que davam aos principais e resgatepelos que tinham presos em corda para os comerem, abalavam aldeias inteiras e em chegando à vista domar, apartavam os filhos dos pais, os irmãos dos irmãos e ainda às vezes a mulher do marido, levandouns o capitão mameluco, outros os soldados, outros os armadores, outros os que impetraram a licença,outros os que lha concedeu. Todos se serviam deles em suas fazendas e alguns os vendiam, porém com adeclaração de que eram índios de consciência e que não lhes vendiam senão o serviço. Quem oscomprava, pela primeira culpa ou fugida, os ferrava na face, dizendo que lhe custaram seu dinheiro eeram cativos.De uma perspectiva crítica é preocupante que as análises sobre a “guerra justa” se fixem demodo quase exclusivo na questão do trabalho indígena. Trata-se, sem dúvida, de um biasescrever a interpretação histórica segundo o prisma do colonizador, que atualmente precisa serrevisto. A decretação de uma “guerra justa” visava fundamentalmente a produzir efeitos nada nossa ignorância. Afinal, foi com muito custo e depois de bastante tempo quepercebemos que a América não era um simples canavial, habitado por prepostos do capitalmercantil e semoventes (escravos), conectado com a humanidade por apenas rotas comerciais.Desse modo é necessário ainda muita pesquisa para afinar aquele conceito. Por exemplo, emElliott, a América espanhola aparece como colônia de uma monarquia compósita, ele nãosublinha a existência de pactos ou negociações entre as elites locais americanas e Madri.40 Já aideia de monarquia pluricontinental tende a sublinhar tais pactos.41 Igualmente, a ideia de elitelocal na América deve ser refinada. Por exemplo, um oficial das ordenanças recebia do rei asua carta patente, e, portanto, em tese, tinha um valor em todos os recantos da monarquia. Aomenos nos assentos paroquiais do Rio de Janeiro aparecem pessoas que receberam patentes deordenanças de outras capitanias americanas, e mesmo em outras partes do Império, porémcontinuavam ostentá-las nas freguesias fluminenses. Parece-me, portanto, que, no horizontedessas elites locais, existia a possibilidade de seus integrantes circularem por outras partes doImpério a serviço da monarquia. Por esses e outros motivos, as relações entre conquista e reinodevem ser mais bem pensadas e, da mesma forma, a ideia de elite e poder local.Ainda nessa agenda de estudos, é necessário refinar as pesquisas sobre a atuação dascâmaras municipais enquanto responsáveis pela administração cotidiana do abastecimento, docomércio externo e da justiça ordinária. Nesse refinamento, não se pode esquecer de que, sob ajurisdição de uma câmara, tínhamos um vasto território e nele viviam diversas comunidades:freguesias, capelas curadas etc., segundo a administração religiosa. Da mesma forma, em taisrepúblicas deve-se atentar para a possibilidade da formação de hierarquias sociais costumeiras,cujas normas podiam ser respeitadas e protegidas pela monarquia. No caso da América lusa,uma dessas estratificações era constituída por senhores de engenhos, Donas, fidalgos,negociantes, pardos e escravos. Repare-se que expressões como Donas e pardos42 não eram naAmérica classificações dadas pela Coroa, como a de fidalgo da casa real ou a de cavaleiro daOrdem de Christo. O príncipe não auferia a uma mulher o título de Dona no Rio de Janeiro enem classificava um homem de pardo; essas eram prerrogativas nas repúblicas.A seguir, apresentamos alguns resultados parciais e sujeitos à correção de um dos projetosem curso do grupo de pesquisadores já mencionado. Trata-se de uma investigação, cujo objetoé a análise da comunicação política entre o reino e as conquistas no âmbito da denominadamonarquia pluricontinental.43 Através dessas comunicações, pretende-se ter melhoresinformações sobre as negociações entre as elites locais, a administração periférica, situada noultramar e entendida como agente na monarquia polissinodal, e os conselhos palacianos, e, porconseguinte, adentrar na dinâmica do Império ultramarino luso. Um dos produtos desse projetoé a construção do banco de dados, a partir das correspondências entre as capitanias americanase o Conselho Ultramarino, reunido no Projeto Resgate entre c. 1600 e c. 1808, mais asmissivas trocadas entre São Tomé, Príncipe e Angola com a Lisboa do mesmo período.44 Paraefeito de ilustração, os Gráficos 1 e 2 reúnem todas as cartas enviadas da Bahia, dePernambuco e do Rio de Janeiro para o Conselho Ultramarino nos períodos 1725-26 e 1755-56, totalizando cerca de 1.800.45Tipos de assuntos presentes nas correspondências enviadas pela Bahia, por Pernambuco e pelo Rio deJaneiro para a Corte (Lisboa): 1725-1726Em % do total da correspondênciaComunicações em 1725 e 1726Tipo de assunto Bahia Pernambuco Rio de Janeiro totalconquistas africanas 19 19administração periférica 236 141 109 486Igreja 32 37 27 96fiscais 30 42 4 76mercês 9 52 11 72mercado 12 16 15 43municípios 23 32 13 68Subtotal 860 365 327 235 927Fonte:ver nota 45Tipos de assuntos presentes nas correspondências enviadas pela Bahia, por Pernambuco e pelo Rio deJaneiro com a Corte (Lisboa): 1755-1756Em % do total da correspondênciaComunicações em 1755-56Tipo de assunto Bahia Pernambuco Rio de Janeiro totalconquistas africanas 49 1 50administração periférica 260 22 156 438Igreja 65 15 49 129fiscais 17 14 21 52mercês 28 60 40 128mercado 33 11 15 59municípios 11 13 7 31Subtotal 887 470 142 297 909Nos dois períodos e nas três áreas analisadas, nota-se que os assuntos afeitos à interferênciada Coroa correspondem a mais da metade das cartas enviadas das conquistas para o ConselhoUltramarino, ou seja, eram temas ligados à justiça, à defesa militar, à provedoria da fazenda e àalfândega. Nos Gráficos, seguindo os passos de A.M. Hespanha,46 a esse conjunto denomineide administração periférica da Coroa; eram assuntos ligados aos ofícios régios, porém fora dosconselhos palacianos. Em segundo lugar, temos os assuntos da vida religiosa com cerca de 10a 20% das cartas. Eram missivas preocupadas com a manutenção de paróquias, clero regular esecular e procissões. Repare-se que essa preocupação estava mais presente na correspondênciaenviada ao Conselho Ultramarino do que tópicos como a produção, o mercado ou os assuntosligados ao dia a dia dos municípios, como abastecimento, saúde pública etc.47 Este últimoconjunto de temas nos Gráficos aparece sob a designação de “mercado e município”. No Riode Janeiro e na Bahia tais temas, nos períodos analisados, apareceram em menos de 10% dascorrespondências. Em Pernambuco, em 1755-56, aquela porcentagem chegou a 15% dasmissivas.Esses números talvez sejam explicados pela natureza polissinodal e católica da monarquialusa. Assuntos como abastecimento e saúde ficavam na alçada das câmaras municipais,entendidas como repúblicas. Portanto, conforme as divisões de jurisdições da época, temascomo preços de mercado não deviam ser tratados na correspondência com a Corte. Só o eram,em tese, levados à Sua Majestade em situações de tensões e conflitos. Provavelmente, antes deser encaminhados à Corte, parte dos problemas ligados ao funcionamento das comunidades dasconquistas devia ser resolvido pelos oficiais régios superiores nas capitanias. Quanto àprodução, era algo que devia ser também resolvido no âmbito local ou, mais precisamente,pelas famílias no recinto de suas casas.48 Em contrapartida, a justiça e a defesa militar dosvassalos consistiam em assuntos rotineiros dos ofícios régios.Outro tema também tratado com certa atenção nas cartas, podendo chegar a mais de 10%do número de missivas, eram as mercês ou as remunerações por serviços prestados à Coroapelos vassalos, entendidos como famílias. Por meio desse sistema, eram nomeados os titularesdos ofícios militares e civis, assim como concedidos os hábitos militares, as terras etc. Emoutras palavras, nessas missivas temos a concessão de cartas patentes, com as quais secolocava em funcionamento a administração periférica (desde vice-reis até escrivães daouvidoria). Por seu turno, por essas mercês também se colocava em movimento a hierarquiasocial estamental, tutelada pela monarquia, ou seja, o rei realizava a sua função distributiva e,com isto, minimizava as tensões da sociedade.Da mesma forma, pelo sistema de mercês, o rei interferia na gestão da política dasfreguesias, leia-se, das menores unidades administrativas da monarquia. No caso, estamospensando nas patentes das ordenanças. A escolha dos oficiais das ordenanças das freguesiasera um longo caminho, que começava, ao menos no Rio de Janeiro de fins do século XVII,através da apresentação pela câmara municipal de uma lista de candidatos ao governador dacapitania. Esse opinava sobre tal lista e a enviava ao conhecimento do Conselho Ultramarinoem Lisboa. Com esse conjunto de observações, o rei decidia quem devia ocupar o cargo, porexemplo, de capitão de ordenanças da infantaria de Irajá, freguesiadimensão territorial, acompanhando um processo de conquista. Como iremos ver a seguir, osdois aspectos estão inter-relacionados e a sua dissociação só dificulta a compreensão dofenômeno colonial.A conquista da Costa do Pau-Brasiljuca9DestacarÉ necessário ver agora como esse quadro jurídico-administrativo foi colocado em ação,gerando políticas e acarretando consequências que concretamente afetaram a composição e ofuncionamento da sociedade colonial, dando-lhe uma nova morfologia e dinâmica. Paracompreender o sentido que os preceitos legais assumiram iremos recuperar, de modoesquemático, como se desenrolou o processo histórico em três contextos específicos (nacapitania real da Bahia e nas suas expansões no sentido do litoral norte e do litoral sul).A capitania da Bahia, como sede do governo geral, é o lugar onde mais nitidamente seexpressaram as intenções do projeto colonizador. Os moradores da antiga vila do Perreiravieram a receber não apenas o governador, mas todo um staff dirigente, que incluía ouvidor,provedor, missionários, soldados, um mestre de obras e artífices. Eram 600 colonos e 400degredados,68 que em pouco tempo tiveram que produzir toda uma infraestrutura governativa(Casa de Governo, Audiência, Câmara, Alfândega, Fazenda, fortes e casernas, cadeia, a capelade Nossa Senhora da Conceição, armazéns, ferrarias e habitações para os colonos), em terrenopreviamente cercado e dotado de baluartes com artilharia.O concurso dos indígenas foi essencial, o que El Rey já antecipara, enviando em dezembrode 1548 carta a Diogo Álvares, o chamado Caramuru, solicitando que intermediasse a relaçãocom os indígenas e apoiasse a implantação do núcleo dirigente. Antes de regressar a Portugal,Tomé de Souza investiu na condição de cavaleiros três filhos e um genro de Diogo Álvares porrelevantes serviços prestados à Coroa.69 Previamente, porém, o governador concederasesmarias para os seus principais colaboradores, que nos anos seguintes buscaram implantarnas imediações fazendas e engenhos. A população da Bahia em poucos anos aumentou quaseseis vezes; Pero de Magalhães Gandavo estimou 1.200 vizinhos, pouco mais de 6 mil pessoas,na década de 1570.70 Em 1585 esse número quase dobrou, o número de portugueses chegandoa 11 mil, enquanto a população total correspondia a 22 mil.71 Em 1590, segundo outra fonte, acapitania real teria quase 30 mil moradores.72 O número de engenhos também disparou,permitindo avaliar o vertiginoso crescimento — de apenas um engenho, que precedia àfundação da cidade, chegou a 18 em 1570, 46 em 1585 e 50 em 1590.73É indiscutivelmente com base no trabalho indígena que esse progresso ocorreu. Entreoutros benefícios, Tomé de Souza concedeu aos jesuítas em 1550 uma sesmaria onde foierguido um colégio para órfãos, abrigando cerca de 60 meninos (a maioria indígenas).74 Nosprimeiros anos da presença jesuíta, não há informação sobre o assentamento de aldeias, o quefaz supor que os esforços estivessem dirigidos para a construção do colégio e da igreja deNossa Senhora da Ajuda, primeiro templo jesuíta nas Américas. Anteriormente a 1557, hámenção a duas aldeias, uma delas (São Sebastião) vizinha da cidade, outra a cerca de novequilômetros (Nossa Senhora, no Rio Vermelho). Em 1557, havia quatro aldeias, com umapopulação total de 10 mil pessoas. O número de aldeias foi num crescendo, em 1562 chegandoa 11, e nelas residindo 34 mil indígenas.75 Esses dados são relativos apenas à região dojuca9Destacarjuca9Destacarjuca9DestacarRecôncavo, sem incluir entre outras as aldeias situadas na capitania de Porto Seguro, onde osíndios plantavam mandioca para farinha consumida em Salvador.Apesar de os dados fornecidos por Alexander Marchant abrangerem um período bastantecurto, é possível observar tanto casos de relocalização de aldeias acarretados pela expansãourbana quanto um movimento de expansão dos colonizadores pela área do Recôncavo. Asnovas aldeias criadas acompanhavam a implantação de fazendas e engenhos, dispondo-se de20 a até 180 km de Salvador. É fundamental atentar que os índios assentados nas aldeiasjesuítas corresponderiam por si só a mais de cinco vezes o conjunto de moradores portuguesesanotados por Pero de Magalhães Gandavo para a década seguinte.76O avanço da colonização não se faz, porém, sem conflitos e resistência por parte dosindígenas. A primeira mobilização ocorreu em 1554 e durou quase dois anos, sendo útilacompanhar as suas fases para ter um panorama dos motivos alegados para as “guerras justas”,de seus métodos de ação e de seus resultados. Chegaram aos ouvidos do governador, Duarte daCosta, em maio desse ano, notícias de que os tupinambás estariam atacando engenhos efazendas na margem direita do rio Paraguaçu, pretendendo reaver terras que lhes haviam sidousurpadas. Após discutir o assunto no Conselho, ordenou a ida de uma expedição punitiva,composta por 70 homens e seis cavaleiros, comandados por seu filho, Álvaro. Encontraram nocaminho algumas armadilhas, mas nenhuma resistência ativa, capturaram o morubixaba eincendiaram duas aldeias vizinhas, que lhe teriam dado apoio. Pouco tempo depois, surgiramnotícias de que seis aldeias tupinambás teriam se reunido e feito um cerco a um engenho de umdos mais destacados colonos. A expedição punitiva partiu dessa vez com cerca de 200 homens,também sob o comando de Álvaro da Costa, travando uma batalha com cerca de miltupinambás, que foram vencidos e tiveram suas aldeias queimadas.Numa terceira fase, no ano seguinte, em decorrência da persistência de focos de conflito, ogovernador ordenou que fossem destruídas todas as aldeias em que houvesse cercas(entendidas como preparativos bélicos voltados contra os portugueses), ao fim do que ostupinambás submeteram-se, jurando lealdade a El Rey e comprometendo-se ao pagamento detributos.77 Como recompensa por sua atuação, o governador concedeu ao filho, em 1557, umasesmaria de cerca de quatro léguas na forma de um quadrado, indo da boca do rio Paraguaçuaté a barra do rio Jaguaripe.78 A fixação dos tupinambás em aldeias criadas pelos jesuítas, deonde eles saíam para trabalhar nos engenhos ou integrar as novas expedições de guerra, eraoutro corolário dessa modalidade de ação colonial.Em 1558, reações negativas quanto às normas mais rígidas de catequese juntaram-se àinsatisfação dos tupinambás pela progressiva perda de seus territórios. Dois episódiosacabaram deflagrando o conflito armado: o fato de os tupinambás darem guarida a escravosfugidos de seus senhores e a suposta morte de quatro pescadores no rio Paraguaçu. Após umultimato em que exigia a devolução dos escravos e a entrega dos assassinos, Mem de Sá, nojuca9Destacarjuca9Destacarjuca9Destacarjuca9Destacarcomando de 300 portugueses e quatro mil índios das aldeias, deu início à chamada Guerra doParaguaçu, destruindo entre 130 e 160 aldeias tupinambás na região do Recôncavo. Na aldeiado chefe Tarajó foi erguida uma cruz e iniciadas as bases da construção da vila de NossaSenhora da Vitória. Dessa vez a submissão dos indígenas incluía a plena aceitação dos novosprincípios de catequese.Em 1662, uma epidemia de varíola vitimou cerca de 30 mil pessoas na Bahia, em suagrande maioria nas aldeias missionárias. Há notícias também de um outro surto epidêmicoocorrido em 1584. As doenças e as fugas resultantes do descontentamento com a nova situaçãoacarretaram uma enorme diminuição do contingente de indígenas da capitania. Estimado em34 mil em 1562, em 1585, conforme Gandavo, seriam somente 8 mil, enquanto para outrasfontes seriam apenas 3.600 em 1590.79 O número de escravos africanos, em 1585, segundo opadre Anchieta, correspondia a pouco mais de 1/3 do número de indígenas.As investigações têm revelado que o trabalho indígena foi a mão de obra fundamental noBrasil no século XVI. Baseando-se no estudo da documentação sobre o engenho real Sergipe,Stuart Schwartz revelou que em 1572 a mão de obra indígena representava 93%, escravosafricanosdo fundo da Baía daGuanabara. Com essa carta, o referido capitão passava a responder pelo governo político emilitar da sua freguesia. Para a família do capitão, tal carta correspondia ao reconhecimento dacoroa pelos serviços prestados à república e à monarquia. Com esse procedimento, o poderlocal estabelecia pactos com o central.Os Gráficos também demonstram que cada capitania, dentro dos parâmetros da culturapolítica considerada, tinha a sua própria vida, e devo dizer que esse tipo de análise ultrapassaos limites desse texto. Só me interessa chamar a atenção para as diferenças dos números dePernambuco, do Rio e da Bahia. Essa última, por ser cabeça do Estado do Brasil, por exemplo,em sua correspondência prevaleciam os temas ligados à administração periférica e, além disso,cuidava de assuntos de conquistas do outro lado do Atlântico luso, como Cabo Verde e SãoTomé e Príncipe.Enfim, uma vez concluído esse banco de dados, ele poderá subsidiar diversas pesquisas eapresentar novas informações mais refinadas para a análise do Império ultramarino luso e suamonarquia pluricontinental. De qualquer forma, as ilustrações já apresentadas nos dão umcenário distinto dos ensaios historiográficos, cujo eixo era o capitalismo mercantil e o EstadoAbsolutista.Como afirmei, as ideias, há pouco apresentadas, não devem ser compreendidas como panode fundo dos textos dessa coleção. Com certeza, elas não são compartilhadas por todos osautores de O Brasil Colonial. Porém, devo insistir que um dos traços da coleção é seu caráterplural, ou seja, O Brasil Colonial pretende apresentar aspectos diferentes da América lusa etambém instigar o leitor a perceber as diferentes análises interpretativas, presentes em nossarecente historiografia profissional.*O Brasil Colonial foi pensado e organizado principalmente por Maria de Fátima Gouvêa,brilhante e vivaz historiadora que cedo se foi. Os volumes da coleção, grosso modo, estãodivididos em três grandes módulos, a exemplo de outras coleções de síntese: população,economia e sociedade, cultura e política.O primeiro volume trata da Europa Moderna, das sociedades africanas pré-coloniais e doseu envolvimento com o tráfico de escravos, das sociedades indígenas no Quinhentos e doinício da conquista europeia. Esses estudos foram precedidos pelo ensaio historiográficoescrito por Hebe Castro sobre a escravidão na América lusa antes do século XIX. Um doseixos desse volume foi a ideia de que a Europa, para conquistar o Novo Mundo, antes teve dese conquistar (expansão entre os séculos XI e XIII), e que o entendimento da sociedade doAntigo Regime na Península Ibérica é uma das chaves para a formação da América lusa.O segundo volume estende-se de cerca de 1580 a 1720. Entre os temas tratados, temos apercepção da América em meio à dinâmica do Império ultramarino luso. Da mesma forma,estudou-se a presença de uma sociedade estamental de Antigo Regime, baseada na escravidãomoderna. Compreendendo que tal sociedade tinha no catolicismo ibérico, no serviço àmonarquia e na ideia de autogoverno dos municípios alguns dos seus princípios de organizaçãosocial e política.O terceiro e último volume (ca. 1720 a 1821) trata do longo e denso século XVIII. Neletemos a multiplicação dos povoados e dos mercados regionais desencadeados pela descobertado ouro. Ao mesmo tempo, a sociedade estamental americana percebe a sedimentação daescravidão africana e a mestiçagem. Ainda naquele longo século, as alforrias de escravos, atransformação de pretos da guiné em senhores de cativos, e, mais, a entrada de negociantes noscargos honrosos da república davam um novo colorido e uma dinâmica à estratificaçãoestamental desses trópicos. Nesse último volume, também se assiste à definitiva conversão dacentralidade da periferia na monarquia lusa, ou seja, algumas artérias que davam vida aoImpério ultramarino passavam para mãos de negociantes de grosso trato, situados no Rio deJaneiro.2-Rio de Janeiro, fevereiro de 2014João FragosoBibliografiaABREU, Maurício. Geografia Histórica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Andrea Jackbsson, 2011.ALMEIDA, Carla M. C. Ricos e pobres em Minas Gerais, produção e hierarquia social no mundo colonial,1750-1822. BH: Argumentum, 2010.ALMEIDA, M. Regina Celestino de Almeida. Metamorfoses indígenas. Identidade e cultura nas aldeiascoloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.B. W. Higman. “The sugar revolution”, Economic History Review, LIII, 2, Economic History Society, ReinoUnido: 2000.BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2003.BLAJ, Ilana. A trama das tensões. São Paulo: USP, Humanitas, Fapesp, 2002.BRAUDEL, Fernand. 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Entre as poucas obras com fortebase empírica para a América lusa do século XVII, destaca-se o primoroso estudo de Maurício de Abreu sobre aeconomia e sociedade do Rio de Janeiro. Maurício Abreu, 2011.2. Manuel Leão Vieira, http://consorcio.bn.br/cartografiahistorica/mapas/cart512339fo4.sid.>3. Geyza K. Alves Vieira, 2011, p. 69-89, especialmente p. 77-83.4. Nireu Oliveira Cavalcante, 2005.5. Insisto na fragilidade dos estudos sobre a sociedade e economia da Bahia, e de Pernambuco (inclusive ascapitanias a ela subordinada), áreas vitais do Estado do Brasil de então. Para a primeira região, o estudo deStuart Schwartz continua sendo a principal referência — aliás, não só para a Bahia, mas para toda a Américalusa dita colonial e escravista, apesar do estudo centrar-se principalmente no século XVIII. Para a segundaregião, a situação é mais trágica. Até o momento não há uma sólida historiografia — baseada em vastaspesquisas empíricas —, sobre economia e sociedade de Pernambuco e suas capitanias subordinadas. Nestecenário as pesquisas sobre Minas Gerais do século XVIII surgem como uma das poucas exceções. Para tantobasta ver, entre outros, trabalhos como os de Douglas. C. Libby & Tarcisio. R. Botelho, 2004, p. 69-96;Douglas. C. &. Afonso, de A. Graça Filho, “2003, p. 111-149; M. E. L. de Resende & L. C. Villalta (org.),2007; Afonso de A. Graça Filho, 2007; Ângelo Carrara, 2007; C. M. das G. Chaves, 1999; Eduardo. F. Paiva,1995; Carla M. C. Almeida, 2010. Há ainda um crescente númerode teses de doutorado inéditas como F. Silva,2002; Carlos Leonardo Mathias, 2009. Sobre pesquisas com sólida base empírica que tratam do períodocolonial em Minas Gerais e outras áreas, ver ainda nota 6.6. As possibilidades das fontes cartorárias e camararias podem ser ilustradas pelos trabalhos sobre MinasGerais, São Paulo e Campos — Rio de Janeiro. Ver Ilana Blaj, 2002; Muriel Nazzari, 2001; J. Monteiro, 2010;Sheila de Castro Faria, 1998.7. Ver Sheila de Castro Faria, 1998. Ainda na década de 1990, José Roberto Góes, em sua dissertação demestrado, demonstrou teias de alianças, via compadrio, entre escravos de diferentes senhores de escravos. JoséR. Goés, 1993. Mais recentemente, temos os trabalhos de Silvia M. J. Brügger, 2007; Roberto Guedes, 2008;Cacilda Machado, 2008; Martha Daisson Hameister, 2006.8. A multiplicação dos cursos de Pós-Graduação e com ela a constituição do ofício de historiador resultou narealização de investigações caracterizadas pela conexão entre quadros teóricos, metodologias, técnicas depesquisas e fontes primárias. Aquela multiplicação implicou a superação de estudos baseados em “achismo”,esses muitas vezes encobertos sob o belo título de ensaio. Não custa sublinhar que entre as características doofício de historiador temos a transformação técnica de registros do passado em fontes primárias. Por exemplo,os assentos paroquiais de batismos, de casamentos e de óbitos não foram criados pelo Concílio de Trento(1545-1563) da Igreja romana para servirem de base para a história demográfica - disciplina surgida séculosdepois, na década de 1950 e 1960 —, com os procedimentos criados por L. Henry e P. Goubert, entre outros.Da mesma forma, os registros fiscais da monarquia moderna tinham por objetivo produzir impostos parasustentar os seus gastos no Antigo Regime. Aqueles registros não foram criados, por exemplo, pelos oficiaisrégios dos séculos XVI e ou XVII com o intuito de servirem de fonte primária para os futuros historiadores,nascidos no século XX, em seus estudos do Antigo Regime. Algo semelhante pode ser dito para os textosproduzidos pelos tratadistas renascentistas ou sobre a escravidão Setecentista: o seu manejo pelo historiadorpressupõe o conhecimento de técnicas discursivas. Desnecessário dizer que tais procedimentos, a transformaçãode registros do passado em fontes históricas, têm por base problemas e quadros teóricos. Em realidade, todotrabalho do historiador, caso pretenda seguir a tradição do racionalismo, deve ter por base hipóteses e quadrosteóricos.9. Manolo Florentino, 1997.10. João Fragoso, 1998; Stuart Schwartz, 1988.11. Larissa Brown, 1986.12. Hebe Castro, 1995; Sidney Chalhoub, 1990. Silvia H. Lara, 1988. Sheila de Castro, 1998.13. Hebe Castro, 1995.14. Laura de Mello Souza, 1987; Ronaldo Vainfas, 1998.15. John Monteiro, 1994; M. Regina Celestino de Almeida, 2003. Elisa F. Garcia, 2009.16. Estas redes eram constituídas por pessoas cujas trajetórias pessoais se cruzavam no serviço à monarquia ecujas alianças podiam assumir a forma de parentesco ritual, laços de clientela e/ou de simples amizade. Estesoficiais compartilhavam interesses comuns e valiam-se de suas posições na administração parainterferir/produzir na gestão do Império ultramarino. Um exemplo de tal rede fora a articulada por João deLencastre (governador de Angola, 1688-1691 e depois do Rio de Janeiro), Luis Cesar de Menezes (governadordo Rio de Janeiro, 1690-1693) e Câmara Coutinho (governador-geral do Brasil, 1690-94). Na construção de talconceito, Fátima Gouvêa percebeu nas bases da política no Antigo Regime luso (sustentado na química,hierarquias sociais mais relações pessoais, a exemplo do sistema de mercês) os instrumentos usados pelosatores sociais na gestão da alta política. Maria de Fátima Gouvêa, Ronaldo Vainfas & G. S. Santos &Guilherme Pereira das Neves, 2006 pp. 155-175. Maria de Fátima Gouvêa, 2010.17. Ver Gil Xavier Pujol, 1991; H. M. Scott, 2005.18. Citado por A. M. Hespanha, 1994; A. M. Hespanha, 1984.19. John Elliott, 1992.20. Jack Greene, 1994.21. Patrick O´Brien, 1982; Steve Stern, 1988; Henk Wesseling, 1991.22. I. Wallerstein é um autor mais conhecido do público brasileiro, pois seus textos estão em português, ecomo se sabe para ele a formação do capitalismo coincidiu com a formação de um sistema mundial. Estesistema fora constituído pelo comércio e uma divisão do trabalho internacional, através dos quais o capitalmercantil gerou economias centrais e periféricas, e estabeleceu trocas desiguais entre elas. Em outras palavras,em meio a este movimento, o capital mercantil desde fins do Quatrocentos criou e/ou recriou formaseconômicas, em diferentes continentes, subordinadas aos interesses de centros localizados no noroeste europeu;este último desde o século XVI assentado no trabalho assalariado e na manufatura capitalista. Fernand Braudel,1979; Immanuel Wallerstein, s/d (publicado em inglês em 1974). Para uma crítica a estas ideias ver, entreoutros, Bartolomé Yun Casilla, 2004; Bartolomé Yun Casalilla, 2010. Elizabeth Fox-Genovese & EugeneGenovese, 1983.23. O chamado Debate Brenner consistiu em um conjunto de artigos editados pelo periódico inglês Past andPresent entre 1976 e 1982, que trataram da crise do século XIV e da formação do capitalismo. Questãoconsiderada por muitos autores, como R. H. Hilton, comparável à polêmica de Dobb-Sweezy sobre a transiçãodo feudalismo para o capitalismo. Em fevereiro de 1976, o historiador americano Brenner publicou o artigo“Estrutura de classes agrárias e desenvolvimento econômico na Europa Pré-industrial” no nº 70 de Past andPresent, nele era criticada a ênfase dada, por autores como Le Roy Ladurie, à pressão demográfica na crise doséculo XIV. Para o autor americano, aquela crise e o surgimento do capitalismo na Inglaterra e não em outraparte da Europa decorriam da dinâmica das estruturas agrárias conectadas aos conflitos de classes entrearistocracia e campesinato, e mais a ação das monarquias. Este artigo desencadeou uma série de réplicastambém publicadas na referida revista inglesa. Na década de 1980, o conjunto desses escritos foi reunido por T.H. Aston e C. H. E. Philpin no livro The Brenner Debate. Agrarian class structure and economic developmentin Pre-Industrial Europe, Cambridge University Press. Em tal livro, há um longo ensaio de Brenner, “As raízesagrárias do capitalismo”, onde foi defendida a hipótese de que já em fins do século XIII os senhores inglesescontrolavam em seus domínios uma porcentagem de terras cultivadas bem superior às presentes nos domíniosda aristocracia francesa. Na França, cerca de 85 a 90% da terra (ao menos ao norte) estava em regime detenencia em censo, isto é, livre de imposições arbitrárias e de fato nas mãos dos camponeses. Realidadediferente da presenciada pelos lavradores ingleses. As crises de fome e de mortalidade dos séculos XIV e XV,segundo ainda Brenner, acentuaram ainda mais as diferenças de tais paisagens agrárias. Na França, oscamponeses conseguiram proteger as suas terras, já na Inglaterra a redução demográfica possibilitou aossenhores apropriarem ainda mais terras a seus domínios, deteriorando as condições dos lavradores. A partirdesse cenário inglês teríamos, mais adiante, os cercamentos dos campos e a expropriação dos camponeses,movimentos que resultaram na formação de um capitalismo agrário. Em suma, a chave para o entendimento daconstituição do capitalismo estaria nas diferenças de dinâmicas das estruturas agrárias presentes na Europa defins da Idade Média e nos seus respectivos conflitos entre aristocracia e camponeses. Somente a partir destesprocessos seria possível entender a formação de um capitalismo agrário primeiro na Inglaterra e não na França,por exemplo. Os escritos de Brenner e de Wallerstein (ver nota 22), na tradição marxista, consistem em obrasde referência para diferentes quadros explicativos para a formação do capitalismo; R. H. Hilton, 1988, p. p.9-19. Robert Brenner, 1988, especialmente p. 347. Sobre as críticas de Brenner a Wallerstein e demais seguidoresdas teorias da dependência, ver Robert Brenner, 1977.24. Elizabeth Fox-Genovese & Eugene Genovese, 1983, p. 11.25. Ibidem, , p. 6 e 7.26. Ibidem, p. 16-17.27. O’Brien, em artigos posteriores ao de 1982, iria dar importância maior aos mercados coloniais, porém suatese principal é que a proeminência do mercado doméstico nos primeiros tempos da industrialização inglesapermaneceria. Segundo ele, a chamada americanização do comércio externo inglês, entre 1772 e 1820, deve-se,entre outros motivos, às guerras no Velho Mundo. Entre 1814 e 73, as exportações para a Europa cresceriammais rapidamente do que para a América e o Caribe (O´BRIEN, P. & ENGERMAN, S. L., 1991). Para umaversão sobre a industrialização europeia, onde se destaca o papel dos fluxos comerciais no interior da Europa,ver Jorge Pedreira, 1994. Em “The Global Economic History of European Expansion Overseas”, O’Brienvoltaria a esse tema. Agradeço a Martha Hameister por esta última indicação. Não custa afirmar que ao sedescartar a ideia de um sistema mundial capitalista desde o século XVI, com isto não se pretende negar aimportância dos fluxos comerciais internacionais na dinâmica da economia europeia e do Novo Mundo. Comcerteza, nos séculos XVI e XVII, o tráfico de escravos e o comércio de têxteis vindo do Oriente, por exemplo,criaram novas bases na vida econômica, porém qualificar tais transformações como capitalistas parece-metemeroso.28. Bartolmé Yun Casalilla, 2010, p. 210-213.29. Henry Kamen, 1984, p. 34-35.30. P. Kriedte, 1985, p. 48.31. Ibidem, p. 67.32. Bartlomé Yun Casililla, 2010, p. 222-22333. Estes traços do ethos da nobreza da terra começam a ser revelados com frequência pelos testamentos dogrupo analisado. André Gago da Câmara, em seu testamento, mandou instituir uma capela permanente demissas constantes no valor de 800 mil reis. Testamento de André Gago da Câmara, anexo ao assento de óbito,datado de 12/6/1705. Livro de Óbitos 1701-1710, Freguesia de Sacramento imagem 58. D. Úrsula da Silveira,mãe de André, falecida em 10/6/1706, mandou celebrar centenas de missas nos conventos e nos mosteiros daCapitania. Livro de Óbitos 1701-1710, Freguesia de Sacramento imagem 11. O primo de André, Ignácio deAndrade Soutomaior, morto em 21/3/1696, determinava no seu testamento a realização de mil missas, ao custode 300 mil reis. Livro de Óbitos 1701-1710, Freguesia da Candelária 1696-171, imagem 63..34. Bartolomé Yun Casalilla, 2010, p. 211.35. Richard S. Dunn, 1972; B. W. Higman, 2000; Robin Blackburn, 2003; Russel R. Menard, 2006.36. Bartolomé Yun Casalilla, 2010, p. 225.37. João Fragoso & Isabel Guimarães (coords.) CAPES-FCT., CAPES-GRICES, 2007; Nuno G. Monteiro(coord.), 2009.38. Vitorino Magalhães Godinho, 1978; Vitorino Magalhães Godinho, 1975. Nuno Gonçalo Monteiro, 1998;João Fragoso & F. Gouvêa, 2009, p. 56.39. John Elliott, 1992.40. Ibidem.41. João Fragoso & F. Gouvêa, 2010.42. As expressões Dona e pardo foram recolhidas dos registros paroquiais de batismo do Rio de Janeiro entre1640 e 1760, ao menos. Elas eram utilizadas pelo padre da freguesia para classificar segmentos da populaçãoparoquiana. Dona, na região e no período considerados, era usado para designar mulheres de antigas famíliaslocais, em geral descendentes dos conquistadores da região e com passagem nos postos honrosos da governançada terra. Pardo aludia a forros ou a egressos da escravidão. Para o caso de pardo, consultar a argumentação deHebe Castro para o século XIX, Das cores do silêncio, 1993; João Fragoso, 2009.43. Ver nota 37. Desde 2010, o banco de dados sobre as comunicações políticas entre o Estado do Brasil, oEstado Grão-Pará, São Tomé e Príncipe e Luanda, baseado nas missivas do Arquivo Histórico Ultramarino eaquelas regiões, um dos produtos da pesquisa “A monarquia e seus idiomas: corte, governos ultramarinos,negociantes, régulos e escravos no mundo português (séc. XVI-XIX)” passou a ser investigação institucional doAntigo Regime nos Trópicos — grupo do CNPq. Ver nota a seguir, nº 44.44. Esse banco reúne as correspondências das seguintes áreas americanas: Estado do Grão-Pará e Maranhão,Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Foram consultados todos os resumos dascorrespondências ativas e passivas das câmaras daquelas capitanias com o Conselho Ultramarino. Além disso,escolheram-se determinados períodos, além das correspondências da câmara, toda e qualquer carta recolhidapelo Projeto Resgate foi analisada. A fase de alimentação de informações do banco foi concluída e ele reúnecerca de 24 mil correspondências.45. O levantamento e a organização em planilhas excell da Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro couberam àsequipes coordenadas, respectivamente, por Francisco Carlos Cosentino (Universidade Federal de Viçosa),Antônio Carlos Jucá de Sampaio (UFRJ) e por nós. A supervisão final dos trabalhos resultou na feitura dobanco de dados, que coube a Carla Almeida (Universidade Federal de Juiz de Fora) e a Francisco CarlosCosentino.46. A. M. Hespanha, 1994.47. No item mercado, nos dois Gráficos, não incluo os assuntos alfandegários ou frotas. Esses últimosaparecem sob a rubrica da administração periférica, pois era da alçada direta dos ofícios militares e daprovedoria da fazenda.48. Ver Bartolomé Clavero, 1990.PARTE I Histórias do BrasilCAPÍTULO 1 Colonização e escravidão no Brasil — Memória ehistoriografiaHebe Mattos*A expressão Brasil Colonial, consagrada pela historiografia, título desta obra coletiva, éproduto da emergência do país como Estado nacional independente em princípios do séculoXIX. A afirmação, apesar de parecer óbvia, produz consequências historiográficas.Silvia Lara, historiadora da escravidão, ao se propor conectar historiografias (a daescravidão e a da colonização portuguesa na América) em livro recente, deixou a condiçãocolonial do Brasil de fora do subtítulo (Escravidão, cultura e poder na América portuguesa).Segundo ela, o período colonial adquirira variações e nuanças com o desenvolvimento e amultiplicidade da pesquisa histórica, implodindo a concepção da colônia como uma unidadetemporal, espacial e social.1Dez anos antes, como destacado por Stuart Schwartz em recente balanço historiográfico,2Laura de Mello e Souza, ao organizar o primeiro volume da História da vida privada noBrasil, deu-lhe por subtítulo Cotidiano e vida privada na América portuguesa,3 exatamentepara fugir da visão retrospectiva implícita à denominação Brasil Colônia.Apesar disso, uma reflexão sobre a gênese ou a identidade da futura nação esteve até muitorecentemente na base da maioria das abordagens sobre o período produzidas por historiadoresbrasileiros. E o uso do adjetivo colonial junto à expressão história do Brasil continua corrente.Empiricamente, identifica periodização que enfatiza a administração e o domínio de Portugalsobre o território que viria a formar o Brasil, desde o século XVI até a independência do país.Para fixar esses marcos, tomam-se como ponto de partida os textos quinhentistas queprocuravam afirmar o domínio português por direito de descobrimento sobre os territóriosencontrados na América. Argumento que, ao ser reforçado pela historiografia brasileiraoitocentista, ajudou a fazer do descobrimento do Brasil uma espécie de certidão de nascimentodo país.4 Ou de batismo, tendo em vista o caráter eminentemente católico da colonização.De fato, para princípios do século XVI, o uso da denominação América portuguesa é tãoretrospectivo quanto o da expressão Brasil Colonial. Nem uma nem outra forma deidentificação então existia ou fazia muito sentido, a não ser talvez como projeto. Não erapossível aos portugueses ignorar os muitos outros atores presentes na costa atlântica daAmérica,
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